No que toca à impugnação judicial direta de normas
administrativas, importa dizer que sempre deu aso a muita resistência quanto à
sua admissibilidade na doutrina: num primeiro plano, por estarem em causa
regras gerais e abstratas, em principio insuscetíveis de produzirem lesões diretas
na esfera dos particulares- a lesão resultaria do ato de aplicação do
regulamento-; e, noutro plano, quando estavam em causa regulamentos
governamentais, por um tradicional respeito pela autoridade normativa do
governo.
Contudo, o prof Vieira de Andrade afirma que estes argumentos
podem ser refutados: quanto ao primeiro argumento dir-se-á que foi limitada na
medida em que houve um “reforço das
ideias de legalidade administrativa e de proteção dos administrados associado a
verificação da lesividade efetiva de muitos atos normativos”. Por sua vez,
quanto ao segundo argumento, também foi posta de lado na medida em que de facto
há uma distinção entre os atos legislativos e os atos regulamentares do
governo com a atribuição ao mesmo de
poderes legislativos normais.
Assim partir de 1997 passou a ter consagração expressa na
constituição no 268º/5, o direito de impugnação judicial direta de normas
administrativas com eficácia externa, quando sejam lesivas de direitos ou
interesses legalmente protegidos dos particulares, no âmbito da garantia da
respectiva proteção judicial efetiva. Ou seja, a partir daí a impugnação, ou
fiscalização, das normas administrativas começou a fazer parte da Justiça
Administrativa, tal como vemos plasmado no art. 4º/1 b) e d) do Estatutos dos
Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF).
No entanto, para além de falar sobre o regime da impugnação
das normas administrativas no âmbito do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos(adiante CPTA), cabe também, com esta exposição, fazer a
articulação entre este e o regime de urgência previsto no âmbito das
providências cautelares, que consagra a suspensão da eficácia de normas
administrativas.
Regime
da impugnação de normas [regulamentares]
O regime da impugnação de normas está previsto nos art. 4º/1 b) e d) do
ETAF e art.2º/2º d),35º e 37º/1 d) que remetem para o art.72º/1 do CPTA. E
deste ultimo retiramos a consagração de três pedidos ou meios impugnatório que
podem ser levadas a cabo: temos então a declaração de ilegalidade com força
obrigatória geral-tem um pendor mais objetivo, pretendendo um imperativo de
reintegração da ordem jurídica-; declaração de ilegalidade com efeitos
circunscritos a caso em concreto e desaplicação- seguindo as duas um pendor
mais subjetivo, dirigindo-se a prossecução da tutela jurisdicional efetiva dos
direitos e interesses dos cidadãos.
Do art. 72º/1 retira-se também qual será o objeto
processual em causa, e existe de facto uma discussão doutrinária, que nos me cabe
aprofundar nesta exposição, mas de um lado temos quem diga, lendo literalmente
o artigo, que objeto processual é a “declaração
de ilegalidade de normas emanadas ao abrigo de disposições de direito
administrativo”; e por outro lado, temos quem diga que o dito objeto que a
norma contém é a verdadeira pretensão do autor, ou seja, o pedido. E, nesse
sentido, essa parte da doutrina diz que na verdade o objeto da impugnação de
normas é a própria norma administrativa em causa.
Feitas estas considerações gerais sobre o regime, cabe
explicitar melhor o modo como opera cada um dos três pedidos de um modo muito
sucinto.
No que toca à declaração de ilegalidade com força
obrigatória geral previsto no art. 73º/1, esse é consagra-se como um controlo
abstrato e principal, pretendendo-se com os seus efeitos remover a norma
viciada do ordenamento jurídico, ou seja, obterá um efeito erga omnes.
Por seu turno, a declaração de ilegalidade com efeitos
subscritos ao caso, previsto no art. 73º/2, terá o seu efeito apenas no caso em
concreto, desaplicando-se ao caso em causa.
Por fim, quanto à desaplicação prevista no art. 73º/3,
esta consiste na desaplicação enquanto meio de controlo incidental da
ilegalidade das normas.
Posto isto, cabe diferenciar os três regimes de uma
forma muito breve, e para efetuar essa operação necessitamos, pois, de saber o
que diferencia realmente os três regimes, e qual é a chave dessa diferenciação
e, ligado a esta, saber qual é natureza da norma em questão. Ora a chave é
realmente o facto de a norma ser imediatamente operante ou mediatamente
operante. Nesse sentido, uma norma é imediatamente operante, ou exequível por
si própria, quando não preciso de mais nenhum ato para que ela produza efeitos.
Essa natureza é, pois, partilhada pela declaração de ilegalidade com força
obrigatória e a declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso. No
que diz respeito ao regime da desaplicação, a norma terá natureza de uma norma
inoperante por si própria, necessita de um outro ato para que ela produza
efeitos, sendo isso que a diferencia dos primeiros dois regimes.
Feita esta diferenciação geral, ainda nos cabe dirimir
o que diferencia os dois primeiros regimes, na medida em que as duas dizem,
respeito a normas imediatamente operantes. Vemos no nº2 do 73º algo que não se
contra no 1º número desse artigo: “[…] pela aplicação de norma imediatamente
operativa que incorra em qualquer dos fundamentos
da ilegalidade previstos no nº1 do artigo 281º da CRP pode obter a
desaplicação da norma […]”. Ora deste preceito, retira-se claramente que para o
autor fazer uso deste regime necessita pois que os fundamentos que alegues seja
feito por base naqueles previstos no art. 281º/1 da CRP. E isto não está
previsto para o pedido de declaração da ilegalidade com força obrigatória geral
previsto no 73º/1 por proibição do artigo 72º/2, ou seja, já não se estaria no
âmbito de jurisdição administrativa plasmado no art. 4º do ETAF.
Feitas estas considerações gerais, necessário é passar
ao núcleo desta exposição que é a tutela cautelar no âmbito da impugnação de
normas.
Da tutela
cautelar no regime da impugnação de normas
Inicialmente, a questão da tutela cautelar no âmbito da
impugnação de normas administrativas foi vista com alguma desconfiança,
nomeadamente por motivos de segurança jurídica e prossecução do interesse
público, tendo por base o facto do legislador prever esse regime apenas para os
atos administrativos. Também a própria jurisprudência mostrou-se reticente por
considerar que a extensão da suspensão da eficácia não cumpria os objetivos
inerentes as providências cautelares que são de facto, por um lado, “previr a
utilidade da sentença principal , e por outro lado, questionava também devido
aos efeitos “prospetivos” das decisões de procedência.
Ora, este entendimento da jurisprudência foi ultrapassado
devido a eficácia ex tunc atribuída
as declarações de ilegalidade previstas no CPTA.
Ainda nessa situação de alguma desconfiança, também o
Tribunal Constitucional,
quando foi chamado a pronunciar-se sobre este problema, considerou que a CRP
unicamente consagrava o direito de impugnar “ as normas administrativas com
eficácia externa, lesivas dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos
cidadãos”, contrariamente ao que acontecia quanto ao atos administrativos, que
tinha previsto, de facto, a suspensão da sua eficácia no art. 268º/4.
Atualmente, temos concebida no art. 112º/2 a) e 130º a
suspensão de eficácia de normas administrativas no conjunto de providencias
cautelar. E, de facto, temos aqui uma resposta do legislador, apesar do
entendimento do TC, à necessidade de uma maior amplitude da tutela
jurisdicional efetiva- um direito constitucional previsto na própria CRP-, que
pretende evitar que uma situação lesiva “ se
consolide na esfera jurídica dos particulares, na pendência do processo
principal destinado a apreciar a apreciar a validade das normas”.
O
regime especial previsto no artigo 130.º não corresponde à normal regulação dos
trâmites na tutela cautela, tendo antes dois objetivos: a determinação das
modalidades de suspensão de eficácia de normas jurídicas constantes de
regulamentos administrativos, e a identificação dos entes com legitimidade
processual activa para proceder à sua propositura.
Analisando de modo mais aprofundado o regime da suspensão da
eficácia de normas administrativas, no âmbito da providencia cautelar, importa
dizer que o modo como este está consagrado no CPTA está diretamente ligada a
forma como está consagrada a própria impugnação de normas prevista nos art.
72ºss também do CPTA, tendo assim um regime dual.
Ora, posto isto, no art. 130º/1 temos previsto a providência
cautelar que se requerer na dependência da uma declaração de ilegalidade com
efeitos circunscritos ao caso. Isto quer dizer que, no caso de procedimento da
decisão da providência, a Administração terá o dever de não aplicar a norma
naquele caso concreto, e também a suspensão de eficácia será, nesse sentido de
prejudicialidade, circunscrito ao caso concreto.
Por sua vez, no art. 130º2,está previsto a tutela cautelar
com base no pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral em
que, em caso de procedimento da providência, a Administração tem o dever de não
“apreciar qualquer caso concreto à luz da
norma em causa”.
No que concerne à legitimidade para requerer a tutela cautelar, no
art. 130º/1 temos um destaque para o particular, não tendo ocorrido qualquer
alteração com a reforma de 2015. A questão coloca-se antes a nível do 130º/2.
Com a revisão de 2015, o legislador
alterou o regime da legitimidade para se requer a providência cautelar no
âmbito do pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, concedendo-a apenas ao Ministério Público e às
pessoas e entidades com legitimidade conferida pelo n.º 2 do artigo 9.º do CPTA,
não citando em nenhum momento o particular lesado.
Uma
parte da doutrina entende que esta supressão da legitimidade dos particulares
não foi de facto um lapso do legislador, e que o que estaria aqui em causa
seria excessividade de o particular, a titulo individual, apresentar pedido de
suspensão de eficácia de norma com força obrigatória geral, sem mais. E isto
decorre também do facto de ter sido suprimido o critério de desaplicação da
norma em três casos concretos para conferir legitimidade activa a um particular
para apresentar pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral
no regime do 73º/2. E, por outro lado, também pelo facto de o tribunal ter de ponderar
efeitos muito mais pesados, que uma suspensão de um regulamento com eficácia
erga omnes poderia comportar para a ordem jurídica.
E, portanto, nesses termos,
para essa parte da doutrina, em sede de tutela cautelar no âmbito da impugnação
de normas, a revisão de 2015, atribui apenas legitimidade ao Ministério Público
e às entidades e pessoas com legitimidade nos termos do n.º 2 do artigo 9.º
para a propositura de providência cautelar de suspensão de eficácia de normas com
força obrigatória geral.
Contudo,
outra parte da doutrina tem uma interpretação diferente. À partida parece que o particular não
poderia requerer o decretamento da tutela cautelar no âmbito da declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral, por falta de legitimidade, o que de
facto não pode de acordo com a letra da lei. No entanto, o que a doutrina vem
afirmar é que o nº1 do artigo 130º do CPTA já confere ao lesado a tutela
cautelar com efeitos circunscritos ao seu caso, mesmo que tenha deduzido um
pedido de declaração da ilegalidade nos termos no 73º/2, e nesse sentido poderá
recorrer ao disposto no 130º/1, vendo salvaguardado a tutela jurisdicional
efetiva da sua pretensão.
Assim
sendo, o particular poderá requerer o decretamento da tutela provisória ao
abrigo do 130º/2, ou seja, quando o pedido principal seja o de declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral, mas com efeitos circunscritos ao seu
caso, tal como dispõe o art.130º/1.
Este
entendimento permite salvaguardar a tutela jurisdicional efetiva do particular
quando deduz um pedido nos termos no 73º/2, e também as preocupações do
legislador já referidas supra, condicionando então os efeitos de um
decretamento nos termos do 130º/2 ao caso concreto do particular.
Conclusão
De facto, no concerne o regime do decretamento da tutela
provisória no âmbito da impugnação de normas, e mais especialmente a
legitimidade conferida ao particular, é necessário de facto, encontrar um
“ponto de equilíbrio” entre a proteção dos particulares, nomeadamente no que
diz respeito a tutela jurisdicional efetiva, com a tutela do interesse público,
constituindo um ponto primário no que toca ao funcionamento da ordem jurídica e
dos princípios a ela subjacentes, e assim também o é na justiça administrativa.
E, nesse sentido, creio de facto que o entendimento da doutrina maioritária no
que diz respeito a legitimidade do particular no decretamento da tutela
provisória no âmbito de um pedido de declaração de ilegalidade com força
obrigatória geral, nos termos em que foi exposto, é de facto uma forma de se
atingir esse equilíbrio desejado.
Bibliografia
- Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2º
Edição, Almedina, 2016
- José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 15ª
edição, Almedina, 2016
-Aulas práticas de Contencioso Administrativo e
Tributário do Prof. Tiago
Serrão, Turma A Dia.
-Comentários à revisão do ETAF e do CPTA. 2º edição. Coordenação: Carla Amado
Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão.
-Estudos em
Homenagem ao Professor Doutor António Cândido de Oliveira, Almedina