quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Impugnação de atos sem (necessária) eficácia externa




Segundo o artigo 148.º do CPA, o ato administrativo é classificado como um ato jurídico com eficácia externa. E já antes estabelecia o artigo 51.º n.º 1 do CPTA, que eram impugnados os atos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos. À partida, para que um ato jurídico concreto praticado no exercício de poderes administrativos possa ser objecto de impugnação, é necessário que ele se projecte sobre situações jurídicas respeitantes a entidades distintas daquela que os emite. Ficam assim, excluídos do universo dos atos que podem ser objecto de impugnação contenciosa, aqueles que contenham decisões de âmbito meramente interno, no sentido de que possuem um alcance estritamente intra-administrativo, esgotando os seus efeitos no estrito âmbito da entidade que os emite.
Porém, o CPTA não consagra tão rígida referência, como resulta da alínea b) do n.º 2 do artigo 51.º, que admite a impugnabilidade de atos intra-administrativos, praticados por órgãos de uma mesma entidade pública em relação a outros órgãos pertencentes a essa mesma entidade, no âmbito do que tem sido qualificado como relações interorgânicas. Mas já anteriormente à revisão de 2015, a mesma solução resultava da previsão da alínea d) do n.º 1 do artigo 55.º do CPTA.
Nos nossos dias, explica o Professor Vasco Pereira da Silva, que a realidade interna das entidades públicas rende a ser crescentemente caracterizada por fenómenos de conflitualidade que decorrem de opções, ao nível da distribuição de competências, assentes na atribuição (não apenas transitória) de poderes e de deveres, em posição de antagonismo perante outros órgãos da mesma entidade pública. É por esse motivo que, na alínea b) do n.º 2 do artigo 51.º, o Código admite a impugnação de atos sem eficácia externa, que não se dirigem a fixar os direitos da administração ou dos particulares, ou os respectivos deveres, no âmbito das relações jurídicas que entre uma e outros se estabelecem, mas cujos efeitos se esgotam no plano intra-administrativo.
Decisivo é, porém, que os atos em causa possuam conteúdo decisório, ainda que se trate de decisões internas, tomadas no âmbito de relações jurídicas interorgânicas. Por outro lado, cumpre recordar que o requisito da definitividade horizontal foi assumidamente afastado do regime da impugnabilidade. Como, já anteriormente à revisão de 2015 resultava da referência, no artigo 51.º n.º 1 e 3, a possibilidade de o ato a impugnar não por termo a um procedimento administrativo e, após a revisão, muito claramente resulta da previsão da nova alínea a) do n.º 2 do artigo 51.º, não são apenas impugnáveis os atos finais, que põem termo a procedimentos administrativos, mas também podem ser impugnados atos que não sejam o ato final do procedimento. supra

Foi supra referido que os atos internos podem ser de dois tipos, consoante sejam praticados:

i) Fora do âmbito de procedimentos administrativos com relevância externa; ou

ii) no âmbito de procedimentos administrativos com relevância externa.

E foi esclarecido que, no meu entendimento, neste último caso, só são internos os atos que certos órgãos pratiquem em relação a outros órgãos da mesma entidade pública, apenas vinculando órgãos da própria entidade pública no âmbito da qual o procedimento corre os seus termos, pelo que não são internos os atos decisórios praticados ao longo dos procedimentos, que, ainda parcialmente, definem situações jurídicas dos interessados.
Contudo, segundo a doutrina seguida, a verdade é que é imprecisa a linha divisória pela qual passa a delimitação do conceito de eficácia externa, que, como vimos, o artigo 148.º do CPA erigiu em critério identitário da figura do ato administrativo, mas cuja aplicação concreta em zonas de fronteira se presta a alguma subjectividade, com o consequente risco de flutuações indesejáveis.
É este motivo que explica a previsão da nova alínea a) do n.º 2 do artigo 51.º do CPTA. Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, em princípio, as decisões tomadas no decurso de procedimentos administrativos que resolvam questões que, nesse âmbito, se coloquem, em termos de essas questões não poderem vir de novo a ser apreciadas em momento procedimental subsequente têm eficácia externa, pelo que são atos administrativos. Mas ainda que, no caso concreto, se entenda que decisões desse tipo não têm tal natureza, a alínea a) do n.º 2 do artigo 51.º assegura, em qualquer caso, a respectiva impugnabilidade.
O Professor ainda refere que, subjacente à previsão da nova alínea a) do n.º 2 do artigo 51.º está, na verdade, o propósito de, independentemente de construções conceptuais, se assegurar a impugnabilidade dos atos centrais que, com a reconhecida clarividência, falava Maria Araújo Torres, quando defendendo que a determinação dos atos administrativos contenciosamente impugnáveis, designadamente quando inseridos em procedimentos complexos, há-de obedecer a um critério pragmático, visando assegurar que a intervenção do tribunal não ocorra nem demasiados cedo (redundando em desperdício da atividade judicial) nem demasiado tarde (redundando em desperdício a atividade das administrações e dos particulares e correndo o risco de não assegurar tutela judicial efectiva aos direitos ou interesses em causa), apontava a necessidade de se partir da análise de cada procedimento especial e determinar qual é aí o ato central (que não coincide necessariamente com o ato final do procedimento), que condiciona relevantemente - segundo critérios de normalidade - os atos procedimentais subsequentes, que assim surgirão como meros atos complementares, e no qual (ato central) radica a lesão dos direitos ou interesses legítimos dos impugnantes. 
Sendo assim, fica claro, que no atual regime jurídico existe, em sentido estrito, a possibilidade de impugnar atos sem (necessária) eficácia externa, tendo em conta o conceito de eficácia externa detalhadamente referido na doutrina apresentada.

José Santos, n.º 24431;
4.º Ano, Subturma 2.


BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Mário Aroso de - Manual de Processo Administrativo, 3.ª Edição, Almedina, Lisboa, 2017;

SILVA, Vasco Pereira da - O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª Edição, Almedina, 2013.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Proibição de executar o ato administrativo - Análise do artigo 128.º, n.º 1 do CPTA

    Nos artigos 112.º a 134.º o CPTA encontra-se previsto o regime aplicável aos processos cautelares. Resulta do artigo 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa que a tutela jurisdicional efetiva perante a Administração Pública inclui a adoção de medidas cautelares, assim cumprir referir que esta possibilidade constitui uma garantia essencial à realização da justiça.
Embora existam mecanismos[1] para agilizar a justa composição de interesses, todos os processos demoram o seu tempo a serem concluídos, devido às necessidades próprias da instrução do processo, nomeadamente, o exercício do contraditório, é por isso que se demonstra essencial assegurar que os tribunais possam adotar, em momento anterior àquele em que o processo vem a ser decidido, providências cautelares, destinadas a dar uma regulação provisória aos interesses envolvidos no litígio. 
Deste modo, as providências cautelares concretizam-se numa regulação provisória do litígio[2] destinada a impedir, que durante a pendência do processo declarativo, se constitua uma situação irreversível ou se produzam danos de tal modo gravosos que ponham em perigo a utilidade da decisão, que o autor, pretende obter naquele processo. Assim, justificar-se-á nos casos em há um elevado risco de o processo chegar ao fim e sobre ele venha a ser proferida uma decisão que já não venha em tempo útil, por já não dar uma resposta adequada às situações jurídicas – seja porque a evolução das circunstâncias durante a pendência do processo tornou a decisão totalmente inútil, ou ,porque essa evolução conduziu à produção de danos dificilmente reparáveis[3]
Antes da revisão de 2015, o CPTA atendia, em termos de determinação, à distinção entre providencias conservatórias e providencias antecipatórias, com a revisão passou-se a submeter a decisão do juiz, isto é a decisão de atribuir a providencia cautelar, a um regime unitário, independentemente da classificação das providências requeridas.

Importa considerar que o CPTA consagra uma cláusula aberta ao enunciar, no artigo 112.º, n.º 2, a título meramente exemplificativo[4] algumas providências cautelares, de forma a assegurar a plenitude da tutela cautelar. Tal como sucede no processo civil, também em contencioso administrativo vigora a ideia de que cabe às partes um poder genérico de requerer as medidas cautelares mais adequadas à garantia de efetividade de todo e qualquer direito ameaçado, tendo o juiz um poder-dever de decretar a providência mais adequada à prevenção do risco de lesão invocado[5]. Assim como esclarece o artigo 112.º, n.º 1 do CPTA, as providências cautelares têm como função principal assegurar a utilidade das sentenças a proferir nos processos, seja para prevenir a inutilidade proveniente de uma infrutuosidade, isto é, quando devido ao desenvolvimento das circunstâncias, já não é possível concretizar o que será decidido pela sentença, no plano dos factos, seja por retardamento, isto é, ainda que a execução da sentença seja possível, esta não estará em condições de remover danos irreparáveis ou de difícil reparação que resultaram da insatisfação do direito que se manteve durante a pendência do processo.


Feitas estas introdutórias considerações sobre as funções das providências cautelares, proponho-me a analisar em concreto o regime previsto no artigo 128.º, n. º1 do CPTA:


O artigo 128.º[6] visa dar resposta à demora do processo cautelar, acautelando a situação do requerente da suspensão da eficácia do ato durante a pendência daquele processo, isto é, visa, evitar o periculum in mora[7] no processo cautelar, prevenindo danos que possam resultar da demora do processo cautelar, através da introdução de um regime que se destine a atuar durante a pendência do processo cautelar, até que venha a ser decidido. Desta forma este artigo trata das situações em que fica colocada a entidade requerida, entre o momento em que recebe o duplicado do requerimento mediante o qual tenha sido pedida a suspensão cautelar da eficácia do ato por si praticado e aquele em que o tribunal em a pronunciar-se sobre esse pedido, não podendo a entidade requerida iniciar ou prosseguir a execução do ato e, qualquer ato de execução indevida que venha a ser praticado por esta poderá ser declarado ineficaz pelo tribunal. Assume uma função idêntica ao previsto no artigo 131.º, com a diferença[8] de o artigo 128.º ser aplicável a todo o tipo de providências cautelares, prevendo desta forma um decretamento provisório de providências cautelares durante a pendência do processo cautelar. Por sua vez, o artigo 128.º opera extrajudicialmente, isto é, não está dependente de decisão do juiz, determinação da produção automática de um efeito ex lege, favorável ao requerente da providência cautelar, que no, entanto poderá ser levantado pela autoridade administrativa requerida, por razões de interesse público. Já o artigo 131.º visa dar uma resposta a situações de especial urgência e, cumpre referir, que este regime não está sujeito à possibilidade de a autoridade requerida decidir avançar para a execução, mediante resolução fundamentada.


Melhor explicando, o artigo refere que quando seja requerida a suspensão da eficácia de um ato administrativo, a autoridade fica impedida de iniciar ou prosseguir a execução desse ato a partir do momento em que receba o duplicado do requerimento, a menos que, no prazo de 15 dias, assuma, em resolução fundamentada, que a execução é urgente porque o seu diferimento seria gravemente prejudicial para o interesse público. O problema prende-se com a questão de saber quando é que se entende que ocorre a recepção, assim, tem sido aceite que a proibição de executar opera com a citação no processo cautelar, nos termos do artigo 117.º e, em casos de especial urgência, o requerente pode recorrer ao mecanismo previsto no artigo 114.º, n.º 4. A ideia subjacente é a de que ao abrigo de uma resolução fundamentada pode a Administração executar o ato e, poderá fazê-lo até ao momento em que o tribunal, eventualmente, julgue infundada a resolução ou venha a decidir o processo cautelar decretando a suspensão da eficácia (situação que implica, desde logo, a caducidade da resolução). Como já referido supra a proibição de executar não está dependente da intervenção do juiz, por isso é um efeito que se produz extrajudicialmente, desta forma, não depende da apreciação do seu mérito por parte do juiz, mas também o levantamento desta proibição opera extrajudicialmente, sem intervenção do juiz e resultando apenas de uma manifestação unilateral da Administração.

Esta prerrogativa da Administração e o seu caráter extrajudicial, vem tornar uma situação que corresponderia a um exercício excecional, em que a utilização desta prerrogativa apenas seria exercida na medida em que se revele estritamente necessária e indispensável, banaliza-se de uma forma inaceitável. A inadmissibilidade da banalização das resoluções fundamentadas[9] tem sido acolhida, em larga medida, pela jurisprudência nacional. A jurisprudência tem sido exigente quanto à questão de admitir as razões que a fundamentem, admitindo apenas em situações de grave prejuízo e, assim, só a título excepcional deve ser admitida a derrogação da regra da proibição de executar que o artigo 128.º consagra.[10] A resolução fundamentada, apenas, deve ocorrer quando haja uma absoluta necessidade de assegurar a prossecução do interesse público e, assim, deste modo, se justifique o afastamento do regime do artigo 128.º, assim, nestes termos, vem o TCA do Sul, a 17 de janeiro de 2008, proc. n.º 2604/07, referir que tal como acontece nos casos de existência de causas legítimas de inexecução, por razões de interesse público, o juiz administrativo, neste casos, deve ser particularmente exigente quando é chamado a proceder à fiscalização dos fundamentos em que se sustentam as resoluções emitidas ao abrigo do artigo 128.º. Não existindo a referida resolução fundamentada, a proibição de executar o ato administrativo mantém-se, até que seja proferida decisão sobre o pedido de suspensão da eficácia do ato. 


O artigo 128.º, aquando da revisão de 2015, não sofreu qualquer alteração, embora a comissão de revisão, no anteprojeto que foi submetido a discussão pública em 2014, propunha uma alteração profunda a este artigo e, neste sentido, propunha-se a eliminação da possibilidade de a entidade requerida levantar, salvo em estado de necessidade, a proibição de executar, através de uma resolução fundamentada, atribuindo-se ao juiz cautelar o poder de determinar o levantamento da referida proibição, mediante requerimento da entidade requerida ou dos beneficiários do ato.

A opção de manter o regime vigente, tem sido alvo de duras críticas, pois algumas muitas expressões do artigo 128.º[11] não são claras, o que dá azo a que surjam duvidas doutrinais e jurisprudenciais. Muitas das dúvidas de interpretação e aplicação do artigo 128.º, n.º 1 do CPTA poderiam ter sido resolvidas com a revisão de 2015, nomeadamente no que diz respeito ao momento em que ocorre a receção do “duplicado do requerimento”, colocando-se a questão de saber quando é que opera a proibição de executar, ou, até mesmo, a questão de saber como fazer a articulação do preceituado no artigo 128.º e o instituto do decretamento provisório de providências cautelares, previsto no artigo 131.º.




Bibliografia:

José Viera de Andrade, “A Justiça Administrativa: Lições”, 16ª Edição, Almedina, Coimbra, 2017;


Mário Aroso de Almeida, “Manual de Processo Administrativo”, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2017;


Mário Aroso de Almeida/Carlos Fernandes Cadilha, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4ª Edição, Almedina, Coimbra, 2017;


Vasco Pereira da Silva, O contencioso Administrativo no divã da psicanálise, ensaio sobre as ações no novo processo administrativo, 2ª edição, 2013, Almedina.



Margarida Castanheira
Aluna n.º 24285. 



[1] Como seja o caso das soluções de aceleração ou simplificação processual.

[2] Dependendo do seu conteúdo, a regulação pode determinar a pura:
i.                      manutenção do statu ou a antecipação de efeitos a produzir pela sentença a proferir no processo sobre a questão de fundo e que alteram o statu quo;
ii.                    a constituição a título provisório, de um terceiro tipo de situação, que não corresponda a nenhuma das anteriores situações, mas que ainda assim terá o escopo de assegurar a manutenção ou restabelecimento do statu quo, isto é, uma função conservatória, ou a obtenção de novas utilidades pretendidas no processo principal, isto é, uma função antecipatória.

[3] Neste sentido, cf., Mário Aroso de Almeida/Carlos Fernandes Cadilha, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4ª Edição, Almedina, Coimbra, 2017.

[4] “(…) podendo consistir designadamente na (…)”
O que não implica a existência de relações de subsidiariedade entre providências cautelares, cabe ao próprio tribunal assegurar oficiosamente, no seu exercício poder de substituir as providências que lhe sejam requeridas por outras” como se pode ler, cf., Mário Aroso de Almeida/Carlos Fernandes Cadilha, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4ª Edição, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 193.

[5] Cf., neste sentido, Lopes do Rego, Comentários Código de Processo Civil, vol. I, pp. 341 e ss.

[6] O artigo 128.º, aquando da revisão de 2015, não sofreu qualquer alteração, embora a comissão de revisão, no anteprojeto que foi submetido a discussão pública em 2014, propunha uma alteração profunda a este artigo, que iria no sentido da eliminação da possibilidade de a entidade requerida levantar, salvo em estado de necessidade, a proibição de executar, através de uma resolução fundamentada, atribuindo-se ao juiz cautelar o poder de determinar o levantamento da referida proibição, mediante requerimento da entidade requerida ou dos beneficiários do ato.

[7] Cf. Artigo 120º, n.º 1 do CPTA

[8] Nas palavras do prof. Mário Aroso de Almeida, o regime do artigo 128.º e do artigo 131.º encontram-se numa relação de complementaridade, admitindo-se a hipótese do decretamento provisório da suspensão da eficácia de atos administrativos, como se pode ler, pp. 444 em Mário Aroso de Almeida, “Manual de Processo Administrativo”, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2017.

[9] Cf. Acórdão do Tribunal Administrativo Central do Sul de 25 de outubro de 2017, proc. n.º 2942/2017.

[10] Neste sentido, Acórdão do Tribunal Administrativo Central do Norte de 14 de fevereiro de 2008, proc. n.º 1205/07.


[11] Como se pode ler no comentário “Providências cautelares, suspensões automáticas e resoluções fundamentada” de Tiago Duarte, JULGAR - N.º 26 - Coimbra Editora: Há mesmo quem considere que o modelo previsto no art. 128.º do CPTA é inconstitucional, por pôr em causa o princípio da tutela jurisdicional efectiva do beneficiário do acto, na medida em que o seu interesse na execução do acto não é tomado em consideração, o que é tanto mais relevante quando a autoridade administrativa opta por não emitir uma Resolução Fundamentada, permitindo, assim, a manutenção da suspensão automática do acto, pela mera apresentação do pedido de suspensão de eficácia do mesmo e sem que o beneficiário do mesmo seja “tido nem achado”, de modo a poder contrapor o seu interesse na execução do acto, ao interesse do requerente.

domingo, 25 de novembro de 2018

Da impugnação de normas à tutela cautelar: a suspensão de eficácia de normas


No que toca à impugnação judicial direta de normas administrativas, importa dizer que sempre deu aso a muita resistência quanto à sua admissibilidade na doutrina: num primeiro plano, por estarem em causa regras gerais e abstratas, em principio insuscetíveis de produzirem lesões diretas na esfera dos particulares- a lesão resultaria do ato de aplicação do regulamento-; e, noutro plano, quando estavam em causa regulamentos governamentais, por um tradicional respeito pela autoridade normativa do governo.
Contudo, o prof Vieira de Andrade afirma que estes argumentos podem ser refutados: quanto ao primeiro argumento dir-se-á que foi limitada na medida em que houve um “reforço das ideias de legalidade administrativa e de proteção dos administrados associado a verificação da lesividade efetiva de muitos atos normativos”. Por sua vez, quanto ao segundo argumento, também foi posta de lado na medida em que de facto há uma distinção entre os atos legislativos e os atos regulamentares do governo  com a atribuição ao mesmo de poderes legislativos normais.
Assim partir de 1997 passou a ter consagração expressa na constituição no 268º/5, o direito de impugnação judicial direta de normas administrativas com eficácia externa, quando sejam lesivas de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, no âmbito da garantia da respectiva proteção judicial efetiva. Ou seja, a partir daí a impugnação, ou fiscalização, das normas administrativas começou a fazer parte da Justiça Administrativa, tal como vemos plasmado no art. 4º/1 b) e d) do Estatutos dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF).
No entanto, para além de falar sobre o regime da impugnação das normas administrativas no âmbito do Código de Processo nos Tribunais Administrativos(adiante CPTA), cabe também, com esta exposição, fazer a articulação entre este e o regime de urgência previsto no âmbito das providências cautelares, que consagra a suspensão da eficácia de normas administrativas.

Regime da impugnação de normas [regulamentares]

O regime da impugnação de normas está previsto nos art. 4º/1 b) e d) do ETAF e art.2º/2º d),35º e 37º/1 d) que remetem para o art.72º/1 do CPTA. E deste ultimo retiramos a consagração de três pedidos ou meios impugnatório que podem ser levadas a cabo: temos então a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral-tem um pendor mais objetivo, pretendendo um imperativo de reintegração da ordem jurídica-; declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos a caso em concreto e desaplicação- seguindo as duas um pendor mais subjetivo, dirigindo-se a prossecução da tutela jurisdicional efetiva dos direitos e interesses dos cidadãos.
Do art. 72º/1 retira-se também qual será o objeto processual em causa, e existe de facto uma discussão doutrinária, que nos me cabe aprofundar nesta exposição, mas de um lado temos quem diga, lendo literalmente o artigo, que objeto processual é a “declaração de ilegalidade de normas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo”; e por outro lado, temos quem diga que o dito objeto que a norma contém é a verdadeira pretensão do autor, ou seja, o pedido. E, nesse sentido, essa parte da doutrina diz que na verdade o objeto da impugnação de normas é a própria norma administrativa em causa.
Feitas estas considerações gerais sobre o regime, cabe explicitar melhor o modo como opera cada um dos três pedidos de um modo muito sucinto.
No que toca à declaração de ilegalidade com força obrigatória geral previsto no art. 73º/1, esse é consagra-se como um controlo abstrato e principal, pretendendo-se com os seus efeitos remover a norma viciada do ordenamento jurídico, ou seja, obterá um efeito erga omnes.
Por seu turno, a declaração de ilegalidade com efeitos subscritos ao caso, previsto no art. 73º/2, terá o seu efeito apenas no caso em concreto, desaplicando-se ao caso em causa.
Por fim, quanto à desaplicação prevista no art. 73º/3, esta consiste na desaplicação enquanto meio de controlo incidental da ilegalidade das normas.
Posto isto, cabe diferenciar os três regimes de uma forma muito breve, e para efetuar essa operação necessitamos, pois, de saber o que diferencia realmente os três regimes, e qual é a chave dessa diferenciação e, ligado a esta, saber qual é natureza da norma em questão. Ora a chave é realmente o facto de a norma ser imediatamente operante ou mediatamente operante. Nesse sentido, uma norma é imediatamente operante, ou exequível por si própria, quando não preciso de mais nenhum ato para que ela produza efeitos. Essa natureza é, pois, partilhada pela declaração de ilegalidade com força obrigatória e a declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso. No que diz respeito ao regime da desaplicação, a norma terá natureza de uma norma inoperante por si própria, necessita de um outro ato para que ela produza efeitos, sendo isso que a diferencia dos primeiros dois regimes.
Feita esta diferenciação geral, ainda nos cabe dirimir o que diferencia os dois primeiros regimes, na medida em que as duas dizem, respeito a normas imediatamente operantes. Vemos no nº2 do 73º algo que não se contra no 1º número desse artigo: “[…] pela aplicação de norma imediatamente operativa que incorra em qualquer dos fundamentos da ilegalidade previstos no nº1 do artigo 281º da CRP pode obter a desaplicação da norma […]”. Ora deste preceito, retira-se claramente que para o autor fazer uso deste regime necessita pois que os fundamentos que alegues seja feito por base naqueles previstos no art. 281º/1 da CRP. E isto não está previsto para o pedido de declaração da ilegalidade com força obrigatória geral previsto no 73º/1 por proibição do artigo 72º/2, ou seja, já não se estaria no âmbito de jurisdição administrativa plasmado no art. 4º do ETAF.
Feitas estas considerações gerais, necessário é passar ao núcleo desta exposição que é a tutela cautelar no âmbito da impugnação de normas.

Da tutela cautelar no regime da impugnação de normas


Inicialmente, a questão da tutela cautelar no âmbito da impugnação de normas administrativas foi vista com alguma desconfiança, nomeadamente por motivos de segurança jurídica e prossecução do interesse público, tendo por base o facto do legislador prever esse regime apenas para os atos administrativos. Também a própria jurisprudência mostrou-se reticente por considerar que a extensão da suspensão da eficácia não cumpria os objetivos inerentes as providências cautelares que são de facto, por um lado, “previr a utilidade da sentença principal , e por outro lado, questionava também devido aos efeitos “prospetivos” das decisões de procedência.
Ora, este entendimento da jurisprudência foi ultrapassado devido a eficácia ex tunc atribuída as declarações de ilegalidade previstas no CPTA.
Ainda nessa situação de alguma desconfiança, também o Tribunal Constitucional[1], quando foi chamado a pronunciar-se sobre este problema, considerou que a CRP unicamente consagrava o direito de impugnar “ as normas administrativas com eficácia externa, lesivas dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos”, contrariamente ao que acontecia quanto ao atos administrativos, que tinha previsto, de facto, a suspensão da sua eficácia no art. 268º/4.
Atualmente, temos concebida no art. 112º/2 a) e 130º a suspensão de eficácia de normas administrativas no conjunto de providencias cautelar. E, de facto, temos aqui uma resposta do legislador, apesar do entendimento do TC, à necessidade de uma maior amplitude da tutela jurisdicional efetiva- um direito constitucional previsto na própria CRP-, que pretende evitar que uma situação lesiva “ se consolide na esfera jurídica dos particulares, na pendência do processo principal destinado a apreciar a apreciar a validade das normas”.

            O regime especial previsto no artigo 130.º não corresponde à normal regulação dos trâmites na tutela cautela, tendo antes dois objetivos: a determinação das modalidades de suspensão de eficácia de normas jurídicas constantes de regulamentos administrativos, e a identificação dos entes com legitimidade processual activa para proceder à sua propositura.

Analisando de modo mais aprofundado o regime da suspensão da eficácia de normas administrativas, no âmbito da providencia cautelar, importa dizer que o modo como este está consagrado no CPTA está diretamente ligada a forma como está consagrada a própria impugnação de normas prevista nos art. 72ºss também do CPTA, tendo assim um regime dual.
Ora, posto isto, no art. 130º/1 temos previsto a providência cautelar que se requerer na dependência da uma declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso. Isto quer dizer que, no caso de procedimento da decisão da providência, a Administração terá o dever de não aplicar a norma naquele caso concreto, e também a suspensão de eficácia será, nesse sentido de prejudicialidade, circunscrito ao caso concreto.
Por sua vez, no art. 130º2,está previsto a tutela cautelar com base no pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral em que, em caso de procedimento da providência, a Administração tem o dever de não “apreciar qualquer caso concreto à luz da norma em causa”.
No que concerne à legitimidade para requerer a tutela cautelar, no art. 130º/1 temos um destaque para o particular, não tendo ocorrido qualquer alteração com a reforma de 2015. A questão coloca-se antes a nível do 130º/2.
            Com a revisão de 2015, o legislador alterou o regime da legitimidade para se requer a providência cautelar no âmbito do pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, concedendo-a apenas ao Ministério Público e às pessoas e entidades com legitimidade conferida pelo n.º 2 do artigo 9.º do CPTA, não citando em nenhum momento o particular lesado.
Uma parte da doutrina entende que esta supressão da legitimidade dos particulares não foi de facto um lapso do legislador, e que o que estaria aqui em causa seria excessividade de o particular, a titulo individual, apresentar pedido de suspensão de eficácia de norma com força obrigatória geral, sem mais. E isto decorre também do facto de ter sido suprimido o critério de desaplicação da norma em três casos concretos para conferir legitimidade activa a um particular para apresentar pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral no regime do 73º/2. E, por outro lado, também pelo facto de o tribunal ter de ponderar efeitos muito mais pesados, que uma suspensão de um regulamento com eficácia erga omnes poderia comportar para a ordem jurídica.
E, portanto, nesses termos, para essa parte da doutrina, em sede de tutela cautelar no âmbito da impugnação de normas, a revisão de 2015, atribui apenas legitimidade ao Ministério Público e às entidades e pessoas com legitimidade nos termos do n.º 2 do artigo 9.º para a propositura de providência cautelar de suspensão de eficácia de normas com força obrigatória geral.
Contudo, outra parte da doutrina tem uma interpretação diferente. À partida parece que o particular não poderia requerer o decretamento da tutela cautelar no âmbito da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, por falta de legitimidade, o que de facto não pode de acordo com a letra da lei. No entanto, o que a doutrina vem afirmar é que o nº1 do artigo 130º do CPTA já confere ao lesado a tutela cautelar com efeitos circunscritos ao seu caso, mesmo que tenha deduzido um pedido de declaração da ilegalidade nos termos no 73º/2, e nesse sentido poderá recorrer ao disposto no 130º/1, vendo salvaguardado a tutela jurisdicional efetiva da sua pretensão.
Assim sendo, o particular poderá requerer o decretamento da tutela provisória ao abrigo do 130º/2, ou seja, quando o pedido principal seja o de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, mas com efeitos circunscritos ao seu caso, tal como dispõe o art.130º/1.
Este entendimento permite salvaguardar a tutela jurisdicional efetiva do particular quando deduz um pedido nos termos no 73º/2, e também as preocupações do legislador já referidas supra, condicionando então os efeitos de um decretamento nos termos do 130º/2 ao caso concreto do particular.

Conclusão

De facto, no concerne o regime do decretamento da tutela provisória no âmbito da impugnação de normas, e mais especialmente a legitimidade conferida ao particular, é necessário de facto, encontrar um “ponto de equilíbrio” entre a proteção dos particulares, nomeadamente no que diz respeito a tutela jurisdicional efetiva, com a tutela do interesse público, constituindo um ponto primário no que toca ao funcionamento da ordem jurídica e dos princípios a ela subjacentes, e assim também o é na justiça administrativa. E, nesse sentido, creio de facto que o entendimento da doutrina maioritária no que diz respeito a legitimidade do particular no decretamento da tutela provisória no âmbito de um pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, nos termos em que foi exposto, é de facto uma forma de se atingir esse equilíbrio desejado.

Bibliografia


- Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2º Edição, Almedina, 2016
- José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 15ª edição, Almedina, 2016
-Aulas práticas de Contencioso Administrativo e Tributário do Prof. Tiago Serrão, Turma A Dia.
-Comentários à revisão do ETAF e do CPTA. 2º edição. Coordenação: Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão.
-Estudos em Homenagem ao Professor Doutor António Cândido de Oliveira, Almedina










[1] Acórdão nº556/2000 de 13 de dezembro