quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

O Âmbito Do Contencioso Administrativo Pré-contractual


Âmbito Do Contencioso Administrativo Pré-contractual

Introdução
            Até à reforma de 2015 a acção de contencioso pré-contractual regulada nos então arts 100º a 103º era configurada como um meio processual principal urgente, actualmente sendo actualmente a figura antes classificada como uma acção administrativa urgente. Como aponta Ana Celeste Carvalho “ esta reconfiguração não assume relevância meramente semântica, antes traduzindo a opção do legislador em assumir (…) em relação ao âmbito da acção do contencioso pré-contratual, no sentido de não ter natureza puramente impugnatória, maxime do acto final de adjudicação, mas admitindo também no seu âmbito o pedido de condenação à prática do acto devido relativo à formação dos contratos”.
O regime vigente relativamente à acção do contencioso pré-contratual encontra-se estabelecido no art 102º/1CPTA em especial, e reforçado na previsão genérica dos processos urgentes do art 97º/1 CPTA ao estipular que às acções administrativas urgentes regem-se “no que com ele não contenda, pelas disposto nos capítulos II e III do título II”, mais especificamente as previsões dos capítulos referentes às “Disposições particulares” e “Marcha do Processo” como configuradas para a acção declarativa administrativa “não urgente” são também via de regra aplicáveis no contencioso urgente, e consequentemente no contencioso pré-contratual.
Como menciona a autora supra a acção de contencioso pré contratual está submetido a uma influência directa do Direito Comunitário. Os tipos de contrato referidos no art 100º/1 CPTA dão os abrangidos por directivas comunitárias em matéria de contratação pública (Directiva 2014/23/EU). Cumpre ainda sublinhar que esta acção se reporta a um meio processual necessário e não facultativo, não podendo as partes antes optar em sua preterição em favor do recurso à acção administrativa, o que encontraria a sua justificação nas finalidades prosseguidas, plasmadas nas directivas da contratação pública (nomeadamente as Directivas 2014/23/UE, 2014/24/UE e 2014/25/UE) - “em obediência ao interesse ao interesse da estabilização das relações jurídicas, da certeza e da segurança jurídica”.

Âmbito do Contencioso pré-contratual Administrativo urgente
            Actualmente de acordo com o disposto no art 100º CPTA a acção do contencioso pré contratual não se dirige apenas a actos administrativos, antes abrange também a possibilidade de impugnação do próprio contrato art 102º/4 quando este tenha sido celebrado na pendência da instância, regulamentos administrativos, em relação a normas a normas incluídas nos documentos conformadores do procedimento art 103º, podendo ser deduzido pedido impugnatório mas ainda o pedido de condenação à prática do acto devido.
Especificamente no que diz respeito à agora inovatória do art 100º/1 CPTA de permitir a condenação à prática de actos devidos, como estipula o art 66º/3 e 67º/1, esta condenação é permitida não só contra actos negativos, de indeferimento ou resultantes de inacções, mas também contra actos de conteúdo positivo, bem como a possibilidade de impugnação e o pedido condenatório contra o acto positivo que não satisfaça integralmente a pretensão do autor.
Refira-se que Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha não admitem contudo a inserção na acção do contencioso pré contratual dos pedidos de condenação à abstenção da prática de acto administrativo pré-contratual nem o pedido de declaração de ilegalidade por omissão de normas administrativas.
Por seu turno Ana Carvalho discorda da não inclusão da acção de condenação `abstenção da prática de acto administrativo pré contratual argumentando que “ perante a iminência da prática de um acto lesivo em relação a algum interessado no procedimento de formação de contrato, nada obsta a que a entidade administrativa possa ser demandada, invocando-se argumentos contrários aos invocados no projecto de decisão como fundamento para a prática do acto” por exemplo perante a iminência de um acto de exclusão de um interessado, referindo a autora que também o contencioso pré contratual visa na sua essência prevenir a prática de actos lesivos de forma semelhante aos termos gerais dos art 37º/1 c) e art 39º/1 e 2.
Os tipos de contratos abrangidos pela acção administrativa urgente do contencioso pré contratual encontram-se plasmados no art 100º/1 e dizem respeito: “à formação de contratos de empreitada de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de aquisição ou locação de bens móveis e de aquisição de serviços” elenco baseado mas não correspondente sem mais às disposições constantes das Directivas Europeias, ficam assim de fora do âmbito de aplicação deste contencioso pré- contratual todos os demais contratos, ainda que nos termos do Código dos Contratos Públicos (doravante CCP) estejam submetidos a um regime pré contratual. Defende assim a Ana Carvalho que nestes casos o meio processual adequado é antes a acção administrativa, fora do regime processual de urgência.
É de salientar, contudo, como indica Pedro Costa Gonçalves que não existe de facto uma correspondência entre o elenco do art 100º e as directivas comunitárias: a Directiva 2014/23/EU contempla a figura da concessão de serviços, mais ampla do que adoptada pelo legislador português de “concessão de serviços públicos”, as directivas comunitárias têm em vista ainda “apenas os contratos públicos e concessões cujo valor se situa acima de respectivos limiares de aplicação”. Diferentemente o CPTA atribui o regime de contencioso pré-contratual urgente aos “tipos” de contratos regulamentos pela União Europeia mesmo que em concreto (devido aos limiares de aplicação) os actos impugnados ou omitidos não fossem abrangidos pelas regras Europeias devido a se encontrarem fora do campo de aplicação dessas normas.
Questão controvertida diz respeito à determinação de qual a via processual adequada aos contratos mistos, que têm prestações típicas enquadradas e não enquadradas no art 100º/1 CPTA. O Acórdão do TCA Sul nº 4800/09 de 17/09/2009 clarificou que o um contrato se encontraria abrangido pelo art 100º e como tal era susceptível de ser configurado na acção administrativa urgente do contencioso pré-contratual se: “ a componente de maior expressão financeira de um dos tipos negociais combinados é subsumível a prestações essências do contrato” que se encontre abrangido pelo contencioso pé-contratual. Em linha com o já sustentado por Rodrigo Esteves de Oliveira que sustentava que se deveria “aplicar um critério qualitativo quanto à determinação do regime legal aplicável, em função do objecto principal do contrato ou o que represente a sua maior expressão financeira”.

Âmbito do Contencioso pré-contratual Administrativo urgente
Abordando agora o contencioso pré -contratual dito “não urgente” como refere Pedro Costa Gonçalves trata-se de delimitar “regime jurídico processual de reacção contra aqueles documentos, peças e actos praticados ou omitidos” por contraposição ao já referido contencioso urgente pré-contratual como plasmado nos arts 97º e 100º a 103º-B CPTA.
Como observa o autor o legislador denota uma tendência inata para o dualismo, nas soluções que adopta (não apenas na agora extinta dicotomia entre acção administrativa especial e acção administrativa comum); por um lado regula com um regime “especial” de natureza urgente o contencioso pré-contratual pensado, como já foi referido, para a contratação pública regulamentada em Directivas Europeias. Por outro lado o contencioso pré-contratual de “regime geral” acaba como o autor sublinha por ser delimitado “de forma residual, pela negativa: a ele se reconduzem todos os litígios de natureza pré-contratual de natureza administrativa cuja resolução judicial não tenha de ser encaminhada através de uma acção urgente”. Abarcando, em essência, todos os contratos que não se encontrem plasmados no elenco do art 100º/1 CPTA.
Levanta-se assim a questão de apurar se em relação aos documentos e peças do procedimento, as particularidades do contencioso pré-contratual urgente apenas abrangerão de facto os litígios que digam respeito aos contratos elencados no art 100º/1. Argumenta Pedro Gonçalves que, na literalidade o art 103º/1 refere “ regem-se pelo disposto no presente artigo e no artigo anterior, os processos dirigidos à declaração de ilegalidade de disposições contidas no programa do concurso, no caderno de encargos ou em qualquer outro documento conformador do procedimento de formação de contrato, designadamente com fundamento na ilegalidade das especificações técnicas, económicas ou financeiras que constem destes contratos”, o legislador deixa em aberto que o “procedimento de formação de contrato” possa aludir não só aos contratos plasmados no art 100º/1 CPTA ou antes a qualquer contrato público que assim poderá ter acesso ao mecanismo do art 103º.
Diga-se a título pessoal que a opção do legislador parece ter sido unívoca no sentido de apenas se aplicar o art 103º aos contratos constantes do art 100º/1, não só pela estipulação de um regime “especial” nos arts 100º a 103º mas consequentemente pela própria inserção sistemática destas disposições no CPTA. Não obstante o referido autor sustenta que se justificaria “uma universalização deste regime especial no sentido de se aplicar aos pedidos de declaração de ilegalidade das peças e documentos de todos os procedimentos de formação de contratos” defendendo que sendo o regime especial dos arts 102º e 103º CPTA aplicável a todas as peças e documentos de conformação de procedimentos pré-contratuais justificar-se-ia pelas especificidades próprias desses instrumentos.
Ainda que a lei os qualifique como regulamentos, sempre serão “regulamentos especiais”, com um tempo de aplicação naturalmente limitado à duração do processo contratual e que legitimam um regime especial quanto à tramitação urgente dos processos e à tempestividade dos pedidos de declaração de ilegalidade.



Bibliografia

CARVALHO, Ana Celeste: “Aspectos Processuais da acção de contencioso pré contratual e dos seus incidentes, à luz do CPTA e do CCP revistos” in Revista de Direito Administrativo nº1 Jan-Abr. 2018
GONÇALVES, Pedro Costa: “ O regime jurídico do contencioso pré contratual não urgente” in Comentários à revisão do CPTA e ETAF coordenação Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão, AAFDL, Lisboa 2016.
           

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Procedimentos em Massa-breves notas

Procedimentos em Massa-breves notas

Com a presente exposiçãopretendesse abordar criticamente, levantando o máximo de considerações possíveis sobre o procedimento em massa presente no artigo 99º do presente Código do Procedimento Administrativo (CPTA).

Uma primeira referência, compreendemos ser necessária aludindo ao facto de este ter sido um dos preceitos alvo da Revisão do CPTA (Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 2 de Outubro). De acordo com o preceito do artigo 99º CPTA, decorre que o contencioso dos procedimentos de massa, destinam-se as ações, respeitantes à prática ou omissão de atos administrativos, de procedimentos com mais de 50 participantes, em certos domínios.

Sobre isto, importa ter em conta o referido pela professora Carla Amado Gomes sobre o artigo 99º “O artigo 99º, pretende dar resposta célere a um determinado tipo de contencioso, cíclico, abundante, gerador de instabilidade nos serviços administrativos e potenciador de decisões contraditórias, que o legislador crismou de-procedimentos de massa”. 

Uma nota de alerta para que o preceito do Artº 99 possa não ser confundido com o preceito do artigo 48º CPTA – “Seleção de processos com andamento prioritário”, uma vez que este último, introduzido na reforma de 202/2004, tendo por objetivo principal a redução do número de processos, cujos pedidos sejam da mesma “relação jurídica material” ou que tenham por base as semelhantes situações de facto, se distingue desde logo: Pela propositura de entre mais de 10  e 50 processos; onde existe um único julgamento, ao processo, considerado como “piloto” ou “modelo”, que assumindo um carácter de urgência (estabelecido pelo artigo 48º/8 por força 36º/4), e cuja decisão será estendida a todos os outros processos.

Assim clarificado, podemos constatar, até pelo intuito que levou ao seu âmbito de aplicação que, os processos considerados dentro do artigo 48º, pretendem sobretudo evitar a sobrecarga dos tribunais administrativos, enquanto os do artigo 99º, pretende-se adaptar o contencioso administrativo à litigância em massa, uma vez que estatuiu um meio processual autónomo: sendo exemplo disso os “prazos” próprios, presentes no artº99/nº2+nº5+nº6...

Baseados na posição da professora Carla Amado Gomes, que amplamente crítica o procedimento em massa, considerando que este abrange grande parte da “função publica”, consideramos, correta esta ideia, sobretudo devido ao largo âmbito de aplicação deste preceito, mas que tendo em conta, a multiplicidade de sujeitos se urge como necessária, tal como defende o professor Vasco Pereira da Silva.


Duarte Teixeira
Nº 26672


Bibliografia:
àCadernos de Justiça Administrativa Nº128: Ana Fernanda Neves, Contencioso dos procedimentos de massa: pressupostoprocessual específico do erro na forma de processo;

àMário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina 4ªEdição;

àCarla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão (Coordenadores), Comentário à Revisão do ETAF e CPTA, AAFDL Editora, 3ªEdição; 

Artigos 83º/4 e 84º/6 do Código do Procedimento Administrativo

Artigos 83º/4 e 84º/6 do Código do Procedimento Administrativo

Com a presente exposiçãopretendesse abordar criticamente, levantando o máximo de considerações possíveis sobre as disposições presentes nos artigos 83º/4 e 84º/6 do presente Código do Procedimento Administrativo (CPTA).

Uma primeira referência, compreendemos ser necessária aludindo à nova redação destes mesmo artigos pelo Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 2 de Outubro em face das alterações à Lei nº15/2002, de 22 de Fevereiro, pelas alterações ao CPTA, verificando-se o surgir, desta nova figura no âmbito da apresentação a contestação e demais consequências para a sua não articulação.

Começando pela análise ao preceito doa artigo 83º/4 do CPTA, estabelece a ideia de que a falta de impugnação especificada de factos, alegadas pelo autor, nas ações relativas a atos administrativos e normas, os tribunais irão apreciar sempre de forma livre, apesar/não importando a confissão dos mesmos em face dos articulados.

 Ou seja, podemos retirar duas conclusões, entre si conectadas: 

-Uma primeira, subordinada à própria alteração do regime que vigorava anteriormente no contencioso administrativo, onde a falta de contestação não implicava a confissão dos factos alegados pelo autor, consagrando-se que o réu tem o ónus da contestação;

-A outra, tal como expõe o Prof. Mário Aroso de Almeida[1]não se afasta o ónus de contestar, mas apenas o ónus de impugnação especificado”, e verificando o mesmo uma conexão a aplicação dos artigos 566 e segs. do Código do Processo Civil (CPC), em especial do artigo 574º CPC, que já definia este âmbito.

Não esquecendo a alusão, na sua parte inicial, ao 84º/6 CPTA, uma breve referência ao mesmo, onde se alude a que a decisão final deva ser orientada para a verdade, este sanciona a falta de cooperação.

Duarte Teixeira
Nº 26672


Bibliografia:
àMário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina 3ºEdição de 2017;

àMário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina 4ªEdição;

àCarla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão (Coordenadores), Comentário à Revisão do ETAF e CPTA, AAFDL Editora, 3ªEdição; 

àRevista Eletrónica E-Pública: Dinamede de Freitas, Unificação das formas de processo-alguns aspetos da tramitação da ação administrativa, cujo link (http://www.e-publica.pt/volumes/v1n2a09.html)   


[1]Manual de Processo Administrativo, Almedina 3ªEdição de 2017 pág. 355.

A eliminação do risco de dilação temporal indevida: a tutela cautelar no contencioso administrativo


A eliminação do risco de dilação temporal indevida: a tutela cautelar no contencioso administrativo

A providência cautelar, visa como o próprio nome indica acautelar uma eventual irreparabilidade de danos recorrentes de execução de acto administrativo ilegal, bem como do útil efeito da decisão que daí venha a ser proferida, fazendo assim a mesma cumprir o Princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 268º/4 CRP). Assim, em processo declarativo já tentado ou ainda a intentar, o autor clama a adopção de determinadas providências destinadas a impedir uma situação irreversível que produza danos gravosos de tal modo que coloquem em causa a utilidade da própria decisão que se pretende com o processo principal. A sua finalidade consiste deste modo no assegurar da utilidade de uma lide principal em processos morosos, tendo em virtude dessa função de prevenção determinadas características típicas: a instrumentalidade, provisoriedade e sumaridade (infra), afirmando-se ainda como principal requisito da tutela cautelar o periclum in mora – resultante do perigo de inutilidade total ou parcial da sentença (“fundado receio”, art. 120º) – devendo o juíz realizar um juízo de prognose com base nesse requisito, e concluir se há ou não razão para proceder à adopção da providência, conforme a existência de periclum in mora resultante de infrutuosidade - que exigirá uma providência conservatória - ou de retardamento - que postulará a adopção de providência antecipatória.
Na pendência da situação anterior ao actual processo administrativo, os meios cautelares estavam limitados praticamente à suspensão de eficácia do acto, bem como se encontravam fundidos numa categoria genérica de meios processuais acessórios; não estavam inclusivé separados de intimações para comportamento bem como excepções de julgado – um processo principal nos processos não executivos -, valendo também apenas quanto ao objecto para actos administrativos positivos e nunca negativos, não abrangendo as normas e estando também bastante limitados quanto ao conteúdo que apenas admitia efeitos conservatórios e não antecipatórios, não sendo sequer considerado o fumus boni iuris, tendo apenas havido uma alteração desta situação com a revisão constitucional de 1997 – sendo aliás actualmente a CRP a única a prever de forma expressa o direito dos administrados à protecção cautelar.
Um dos aspectos mais inovadores da reforma do processo administrativo, foi o da consagração da juridicidade material como padrão de decisão cautelar, eliminando-se (felizmente) a presunção da legalidade do acto administrativo, e reconhecendo-se o devido relevo ao fumus boni iuris, ou seja, tendo o juiz que apreciar do direito invocado pelo particular ou da ilegalidade que ele afirma existir, mesmo quando se trata de verdadeiros actos administrativos. Permite-se assim que o juiz decrete a providência mesmo sem prova do receio de facto consumado ou da difícil reparação do eventual dano.
Outro aspecto fundamental na concessão ou recusa da providência é a proporcionalidade – característica nuclear do novo sistema de protecção cautelar – e que implica a ponderação de todos os interesses em jogo; mesmo verificando-se o periclum in mora bem como o fumus boni iuris (havendo de facto probabilidade de procedência da acção), deve verificar-se o equilíbrio e prejuízos relativos à prossecução/ou não da providência, analisando qual das duas alternativas será a mais benéfica.
Após a reforma de 2015, temos também o critério da aparência do bom direito: a atribuição da providência depende de um juízo sobre o bem fundado da pretensão que o requerente faz valer – devendo por isso ser avaliado o grau de probabilidade de êxito do requerente no processo declarativo, sendo igualmente considerados os comportamentos que o requerido tenha judicial e extrajudicialmente de modo a fornecer indícios sobre eventual desrespeito da legalidade, devendo no entanto toda esta apreciação limitar-se dentro da tutela cautelar, não comprometendo ou antecipando o juízo de fundo do processo principal. Antes da reforma este critério era tratado de outra forma, com uma maior exigência no caso das providências antecipatórias, já que as conservatórias mantêm apenas o status quo lançando sobre o demandante o ónus da respectiva prova, enquanto nas antecipatórias – que alteram o status quo – se fazem valer situações jurídicas dinâmicas ou pretensivas, recaindo sobre o autor o ónus material da prova do fundamento das suas pretensões. Com a homogeneização estes dois tipos de providências, vem o legislador da revisão de 2015 introduzir uma novidade no nosso ordenamento: submeter ao critério do fumus boni iuris a adopção da tutela cautelar, em particular a relativa a suspensão de eficácia de actos administrativos, o que vem assim limitar o acesso à tutela cautelar dos cidadãos no processo administrativo.
Estabelece o CPTA esta matéria nos seus artigos 112º a 134º, admitindo a lei inclusive providências de qualquer tipo (art. 112º, nº1 CPTA), sempre servindo o propósito de utilidade do processo - vingando deste modo também as providências antecipatórias e não apenas as conservatórias como antigamente – e abrangendo também normas (quanto ao seu conteúdo) e não sendo as providências deste modo autónomas, surgindo apenas como preliminar ou incidente do processo declarativo (principal).
Relativamente às características fundamentais supra referidas, a instrumentalidade surge-nos no artigo 112º/1 - o processo é desencadeado por quem tenha legitimidade processual para o fazer – sendo clarificada pelo artigo 113º/1 que nos indica a dependência da causa que te    m por objecto a decisão sobre o mérito – sem a necessária legitimidade nenhuma decisão poderia ser proferida. Quando intentado preliminarmente à acção principal o autor tem o prazo de 3 meses para efectivar a devida acção principal da qual a providência deve depender (art. 123º nº2), caducando a medida cautelar se tal não se vier verificar por negligência do interessado ou se proferida decisão transitada em julgado desfavorável às suas pretensões (art. 123º, nº1 als. /b) e e)).
Quanto à provisoriedade, a tutela cautelar constitui-se exactamente como uma regulação provisória de interesses, sendo mesmo quando antecipatória, provisória relativamente à decisão principal não podendo substituí-la e caducando sem proposição da mesma como enunciado supra. A mesma não deve no entanto claro por esse motivo permanecer indiferente a alterações das circunstâncias do processo, devendo ter sempre em conta a situação de facto e direito, e sendo deste modo, devido à sua provisoriedade, também contingentes. Podem deste modo (art. 124º) a pedido das partes ou a requerimento do juiz, ser revistas as decisões de adopção ou recusa de medidas cautelares, podendo as mesmas ser também revogadas, alteradas e substituídas. Associado a este carácter provisório, surge também a responsabilidade civil do requerente, que tem o dever de indemnizar sobre os danos que cause ao requerido com dolo ou negligência grosseira, sobretudo quando não haja decisão final de mérito que lhe seja favorável.
Por fim quanto à terceira característica principal – a sumaridade – a mesma está intimamente ligada à urgência patente destas medidas. Esta é exigida pelo periclum in mora, seguindo-se uma tramitação célere nas providências, quer em primeira instância, quer em recurso. Sendo necessária a verificação do fumus boni iuris, a sumaridade manifesta-se na mera exigência de um juízo de verosimilhança sobre a existência do direito que se pretende acautelar, prevendo-se inclusive em geral um contraditório limitado, mas admitido em situações de especial urgência. É ainda esta característica, que justifica a obrigação de o requerente oferecer na petição prova sumária dos fundamentos do pedido, nomeadamente quanto ao seu interesse em agir (art. 114º, nº 2 al. g)).
Importa referir também, que nas disposições particulares, regulam-se casos especiais relativos a determinadas providências: por um lado, umas pretendem complementar o regime (como no caso da suspensão da eficácia de actos, vg arts. 128º e 129º), e outras visam fixar um regime especial de providências com determinado conteúdo, e que em certa medida derrogam o regime geral ou lhe impõem adaptações, constituindo-se como providências especificadas – como as relativas a procedimentos de formação dos contratos, e as que visam a regulação provisória de quantias e produção antecipada de prova. No caso especial das providências pré contratuais, as mesmas destinam-se a corrigir a ilegalidade ou a impedir outros danos – como a suspensão da formação do contrato – sendo utilizadas quando esteja em causa a anulação ou declaração de nulidade e inexistência de actos administrativos (incluindo os contratos do artigo 100º); aplicam-se aqui as regras gerais do procedimento cautelar, com ressalva de especialidades como é determinado no art. 132º nº3. Vale como critério de decisão o da ponderação, devendo o tribunal recusar a providência nestes casos se concluir que os danos resultantes da sua adopção são superiores aos prejuízos de não adopção; quando determine ilegalidades vg de documentos concursais, pode logo o juiz convolar o processo principal e decidir imediatamente a questão de fundo corrigindo a ilegalidade (art. 132º/7).
Deste modo e na averiguação de especiais circunstâncias, propõe-se o contencioso a solver com maior brevidade as pendências administrativas: sempre conservando-se devidamente à cautela.

Índice Bibliográfico:
SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo”, 2009, 2ª edição
ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, 2016, 2ª edição
ANDRADE, José Carlos Vieira de, “A Justiça Administrativa”, 2014, 13ª edição
CORREIA, Sérvulo, Direito do Contencioso Administrativo I, Lex, 2005

                        João Melo, nº24233

Comentário ao acórdão de 16 de Setembro de 2004, Proc. 00433/04.3BEPRT



I – Introdução

O Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 16 de Setembro de 2004[i] – que ora me proponho a comentar e que doravante designarei por «Acórdão» - o tribunal é chamado a pronunciar-se, no âmbito de recurso interposto pelo ora Recorrente, acerca de uma providência cautelar com vista a suspender a eficácia da deliberação do júri que realizou a classificação final dos interessados para um concurso de professor catedrático do Grupo/Subgrupo 2 – Educação para a Universidade de Aveiro, bem como solicitou a intimação para abstenção de nomeação do contrainteressado.

II – A questão em juízo

            O recorrente viu a sua pretensão ser negada no despacho liminar, indeferimento este que se baseou nas alíneas a) e b) do artigo 120.º CPTA, motivo pelo qual, inconformado, interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte. Alegou, o ora recorrente, que se estava perante um ato manifestamente ilegal, pois o contrainteressado era formado na área da psicologia clínica, não podendo ser admitido, e muito menos classificado em primeiro lugar, num concurso que tem como finalidade preencher uma vaga para professor catedrático na área da educação. A par deste argumento, arrazoa ainda o recorrente que a falta de fundamentação da pretensão anulatória da deliberação do júri não é manifesta e que a deliberação do júri e, por conseguinte, a designação do contrainteressado, atendendo ao seu currículo, lesa o interesse público.
            O que se visa no caso em apreço é o ato de nomeação, que é um ato administrativo, e, portanto, obstar a esta escolha, por parte do júri, do contrainteressado em detrimento do aqui recorrente, alicerçando-se na ilegalidade dos atos de admissão e de concurso. O recorrente apela ao critério exarado na al. a) do artigo 120.º do CPTA (anterior à revisão), considerando, o requerente, que o caso em apreço, por o ato ser manifestamente ilegal, é excecional de fumus boni iuris que o exonera de o preenchimento dos pressupostos da proporcionalidade e do periculum in mora.
            Prossegue o tribunal que a exceção invocada não é atendida por não ser manifestamente verosímil que a deliberação do júri será realmente anulada, por não parecer existir uma “. Além disso, a premissa invocada pelo recorrente – de o contrainteressado ter currículo na área da psicológica clínica não releva uma vez que o concurso não se encontrava vedado a professores de disciplinas análogas. Considera o tribunal que não é palpável a “carência de requisitos de admissão do contrainteressado candidato ao concurso seja um facto tão evidente que torne provável ou previsível a anulação da classificação final.”[ii]
            Conclui o tribunal que recorrendo aos critérios usuais deveria provar o periculum in mora e a proporcionalidade, apesar de ter sustentado, acerca deste último que o interesse público seria lesado, entendendo o tribunal que não resulta nenhum dano para o requerente, muito menos irreversíveis, pois se a deliberação for anulada e o autor for classificado em primeiro lugar a providência não terá efeito útil. Decide o tribunal, e citando, “Confrontando este dano com o prejuízo que pode advir durante a pendência do processo para o requerente e contrainteressado pelo facto de não exercerem as funções correspondentes àquela categoria, crê-se ser mais vantajosa a nomeação, pois dessa forma ao menos satisfaz-se o interesse público e o interesse do contrainteressado. Com a concessão da providência, não só não se satisfaz qualquer destes interesses, como não se vislumbra que interesse do recorrente ficaria provisoriamente satisfeito, pois, na sequência da providência, não segue a sua nomeação para o cargo.[iii]

III – Enquadramento teórico

            As providências cautelares são instrumentais da ação principal, baseando-se a sua razão de existência no facto de a ação demorar um período mais ou menos longo, pelo que é suscetível de acarretar consequências que, ao momento da decisão, terá um efeito inútil, perdendo, deste modo o efeito prático.[iv]
            O procedimento cautelar visa uma providência provisória destinada a durar enquanto não seja proferida decisão definitiva na ação principal proposta ou a propor, podendo ser preliminar ou incidente de acordo com o n. º1 do artigo 113º CPTA e que caduca no caso de a ação não ser proposta.[v]
            Para ser decretada uma providência cautelar têm que se encontrar preenchidos determinados pressupostos. Primeiramente, tem que se verificar o periculum in mora, quer isto dizer, que tem que haver um estado de perigo que pode expor o requerente a danos irreparáveis, ou seja, a providência deve servir para evitar um prejuízo grave que ameaça um direito subjetivo, contido no n.º 1 do artigo 120.º do CPTA. Em segundo lugar, deve preencher-se o pressuposto do fumus boni juris, quer isto significar verosimilhança e, portanto, se parece que o autor tem razão é possível, é verosímil, que, de facto tenha contido no n.º 1 do artigo 120.º CPTA. O juiz deve ficar convencido, mas não totalmente uma vez que a providência se destina a vigorar temporariamente. Por fim, a proporcionalidade, quer isto dizer que deve existir uma ponderação de interesses e se resultar um prejuízo que exceda o dano que se evita tal não deve ser acolhida, contido no n.º 2 do artigo 120.º CPTA.[vi]
            No que concerne ao prazo, como referi supra, a providência pode ser requerida enquanto pode ser proposta a ação principal, se a mesma não fora proposta tempestivamente, caduca de acordo com a alínea a) do n.º1 do artigo 123º CPTA e, por essa razão, não é possível requerer a providência cautelar, não tendo, portanto, à primeira vista um prazo concreto.[vii]
            No que ao tipo de providências diz respeito, as mesmas podem ser conservatórias ou antecipatórias, querendo sito significar que, por vezes, que podem conservar ou manter um direito que o interessado entende estar em perigo ou antecipar, a título provisório o resultado favorável que se pretende com a ação principal, respetivamente.[viii] Estas providências visam, respetivamente, tutelar as situações jurídicas finais estáticas ou opositivas e as situações jurídicas instrumentais, dinâmicas ou pretensivas[ix].
Além desta classificação, as providências cautelares podem ainda ser típicas ou atípicas, que devem cumprir os requisitos supra elencados.[x]
            Por fim, cabe dizer que a legitimidade cabe a quem possui legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos de acordo com o n.º 1 do artigo 112º CPTA.

IV – Conclusão
            Conclui-se que andou bem o coletivo de juízes ao negar provimento ao recurso pelos fundamentos acima referenciados.
           



[i] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 16 de setembro de 2004, proferido no processo 00433/04.3BEPRT, consultado em: http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf//D414CB6D0F11827680256F40005B4155.
[ii] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 16 de setembro de 2004, proferido no processo 00433/04.3BEPRT, consultado em: http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf//D414CB6D0F11827680256F40005B4155.
[iii] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 16 de setembro de 2004, proferido no processo 00433/04.3BEPRT, consultado em: http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf//D414CB6D0F11827680256F40005B4155.
[iv]PAIS DE AMARAL, Jorge Augusto, Direito Processual Civil, 9.º edição, Almedina, 2010, pág. 24 e pp. 27-28; VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Justiça Administrativa, 11.ª edição, Almedina, 2011, pág. 301.
[v] PAIS DE AMARAL, Jorge Augusto, Direito Processual Civil, 9.º edição, Almedina, 2010 pág. 25; VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Justiça Administrativa, 11.ª edição, Almedina, 2011, pág. 301
[vi] PAIS DE AMARAL, Jorge Augusto, Direito Processual Civil, 9.º edição, Almedina, 2010, pp. 24-25.
[vii] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 1ª edição, Almedina, 2010, pág.450
[viii] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 1ª edição, Almedina, 2010, pp.445-446; PAIS DE AMARAL, Jorge Augusto, Direito Processual Civil, 9.º edição, Almedina, 2010, pág. 26.
[ix]ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 1ª edição, Almedina, 2010, pág.446.
[x]ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 1ª edição, Almedina, 2010, pág.44;

Sara Gato
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A Formação de Três Juízes- Três Cabeças, um juiz?


A Formação de Três Juízes- Três Cabeças, um juiz?

Introdução
A questão principal será a de perceber qual a formação de julgamento, se juiz singular, ou o juiz em colectivo, serve, em geral, melhor a prestação do serviço público da justiça pelos tribunais administrativos de círculo e como se contextualiza o julgamento por juiz singular no espaço de outros ordenamentos ou compreensões jurídicos
Importa primeiro sublinhar que na prévia iteração do ETAF a regra de julgamento das causas nos tribunais administrativos de círculo plasmada no art 40º do ETAF era a do julgamento no facto e direito, por juiz singular[1]. Contudo a existência de elevado número das então acções administrativas especiais aliado ao facto de que elas muitas vezes gerarem um valor de causa superior ao da alçada redundava frequentemente em que o julgamento fosse levado a cabo por uma “formação de três juízes”[2].
Já no caso das então acções administrativas comuns que seguissem a forma de processo ordinário, o julgamento da matéria de facto era feito, se assim fosse requerido pelas partes e também desde que nenhuma das partes requeresse a gravação da prova, em tribunal colectivo[3], até à revisão do CPC[4].

Da Teoria à Prática
É relevante ainda analisar as considerações de Sofia David (Desembargadora do TCA- Sul) pelas observações que a sua experiência profissional pode oferecer em contraposição e complemento a exposições doutrinárias. Argumenta a magistrada que ao existir a excepção do então art 40º/3 ETAF, à luz do meio processual predominante que à data era a acção administrativa especial visto ser esta a forma a seguir quando se visava a impugnação de actos administrativos, inclusive quando se pretendesse cumular o pedido com outros que correspondessem a outras formas processuais, sempre redundaria numa acção especial (arts 4º e 5º do então CPTA)
Conforme resultava do então art 46º CTPTA a acção administrativa especial acompassava o grosso dos processos submetidos a juízo. Assim, observa a magistrada que dado que a impugnação de actos administrativos pressupunha quase sempre a defesa de bens insusceptíveis de avaliação, por força do critério supletivo art 34º CPTA o valor da causa era quase sempre indeterminável e como tal- superior à alçada do TCA accionando assim a “excepção” do art 40º/3 e levando à necessidade de um colectivo de três juízes.
O resultado foi a perversão da “declarada regra do juiz singular, na excepção que se tornou o modelo-base, do tribunal em formação de três juízes”.
Como reconta a magistrada aquando da introdução da reforma de 2004 era expectante que, no quotidiano dos tribunais que devido à “regra geral” estabelecida no então art 40º/1 de que as acções que corressem nos Tribunais de círculo fossem conhecidas por juiz singulares. Contudo cedo o “feitiço se quebrou” devido à “excepção” contida no art 40º/3 como já foi supra explanado o grosso das acções administrativas decorria sob forma de acção especial exigindo o julgamento de facto e direito por uma formação de três juízes contribuindo grandemente para delongas no processo. Com a exasperante agravante que, na experiência da magistrada, muito frequentemente visava-se a impugnação de actos de administrativos com um conteúdo económico relativamente baixo e nos quais era invocada factualidade “sem especial complexidade que já havia sido tratada de forma sedimentada por tribunais superiores” contudo dado o facto de estas acções serem de valor indeterminável sendo aplicável o art 34º CPTA fazia com que forçosamente tivessem forçosamente de ser julgadas em formação de três juízes.
Consequentemente esta realidade conduziu a que na praxis dos tribunais de círculo o julgamento de facto e de direito fosse levado a cabo pelo relator ao abrigo do art 27º/i) CPTA. E caso houvesse lugar a recurso para o TCA das decisões proferidas pelo relator do processo, elas eram normalmente (pelo menos segundo a autora) admitidos em, sem que se exigisse a reclamação (ou recurso como adiante se verá) para conferência como previsto nos termos do art 27º/2 CPTA.
            Diga-se brevemente a título pessoal que parece tratar-se de um mecanismo “inventivo” encontrado na prática dos tribunais para por motivos de ordem de economia e de celeridade na realidade submeteram estes litígios apenas a juiz singular- o relator processos que jamais justificariam dada a sua reduzida complexidade de ser submetido a um colectivo mas que sempre o teriam que ser por força do sistema tal qual desenhado pelo legislador. É, julga-se, mais uma manifestação indirecta da incongruência que gerava a separação dual de acção administrativa comum e especial, representando esta última em franca contradição linguística o grosso dos litígios submetidos à jurisdição administrativa. Não obstante este “mecanismo” não deixa de ter alguma artificialidade quando confrontado com a então letra da lei esta alegada “prática não escrita” de se permitir proceder para recurso de TCA (sem lançar mão do art 27º/2 CPTA) uma decisão que formalmente deveria ter sido decidia em formação, mas que materialmente foi decidido pelo relator, em juízo singular.


Da “Reclamação” para Formação de Três Juízes
            Relativamente à questão de saber se a ação de execução de sentença de anulação deve ser julgada por juiz singular, como constava do art 40º/1 do antigo ETAF, o TCA Sul no Acórdão de 5/12/2013 proc. Nº09508/12 considerou que “ as regras que o ETAF e o CPTA criaram para a acção administrativa especial e para a competência de formação de três juízes são únicas, apenas aplicáveis a este tipo de acção, não se alargam aos demais meios processuais e designadamente ao processo executivo”, sendo pois a regra nestas matérias de decisão por juiz singular, existindo a possibilidade do juiz encarregado do processo optar por submeter o processo a decisão alargada de três juízes se a complexidade deste assim o justificar- não obstante parece resultar do Acórdão o julgamento do processo segue a regra do processo declarativo.
            O motivo determinante invocado pelo legislador para reafirmar e estender a regra do julgamento do juiz singular, como referido, reside na prática do funcionamento do tribunal em juiz singular quando, à luz da então redacção arts 40º/ 3 do ETAF e do art 27º do CPTA, tal não seria possível. A discussão dizia respeito à aplicação do art 27º/1 i) do ETAF de acordo com o qual o juiz relator pode proferir decisão apenas no caso de ser simples a questão ou questões a decidir e no caso de ser manifestamente infundada a pretensão deduzida. Também o art 27º nº 2 segundo o qual, dos “despachos do relator (que não sejam de mero expediente) cabe reclamação para conferência” pareceria que estava aqui em causa o “despacho” proferido pelo juiz, pelo qual decide não submeter a causa ao julgamento “ da formação de três juízes”; contudo este despacho mesmo não tendo sido emitido está claro implícito na sentença do juiz singular.
O STA, no Acórdão uniformizador de jurisprudência nº 420/2012[5], bem como no Acórdão nº 3/2012[6] pronunciou-se no sentido de ser devida a reclamação para a conferência nos termos do art 27º/2 das decisões “do juiz relator sobre o mérito da causa, proferidas sob a invocação dos poderes conferidos no art 27º/1 i) CPTA” e não recurso. A detecção pelas partes da violação destas normas (arts 40º/3 ETAF e art 27º/ 1 i) levava a que suscitassem o julgamento por uma formação de três juízes através da reclamação para conferência. Não o tendo sido feito no prazo legal, não seria possível a convolação de recurso interposto, mesmo dentro do prazo- daqui surgiram um série de Acórdãos que rejeitam recursos reiterando esta jurisprudência do STA.
Também o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 846/2013 bem como no Acórdão nº 486/2014 considerou que “ a exigência de reclamação para conferência, não só não impede a intervenção de um segundo grau de jurisdição, como reforça o número de reapreciações das questões em discussão, pelo que não tem qualquer fundamento a invocação duma violação ou sequer de uma restrição do direito ao recurso” adiante-se desde já contudo que é dúbio para alguns autores, como Ana Fernanda Neves que a norma em causa como é interpretada pelo STA e TC assegure de facto um duplo grau de jurisdição.
Sobre esta temática Sofia David assinala que a formação de três juízes corresponde a uma nova figura processual até então sem paralelo no processo civil onde existem tribunais singulares, ou o julgamento feito por juiz singular, e os tribunais colectivos, com julgamento feito por três juízes (o relator e dois adjuntos).
Configura pois autora a formação de três juízes como uma figura autónoma do tribunal colectivo (que julgaria as então acções administrativas comuns), tratando-se de um órgão colegial, que decide em conferência quer a fixação da matéria factual como de Direito inclui um relator (a quem o processo foi distribuído) e dois adjuntos, para a qual se reclama dos despachos e decisões do relator.
Entendendo que nos casos do então art 40º/3 ETAF a “competência originária para o funcionamento dos tribunais de círculo é a da formação de três juízes, que conhece de facto e de direito”. Argumentando que desta forma faria sentido a disposição constante do art 27º/2 CPTA ao estipular que dos despachos do relator cabe reclamação para conferência. Justificar-se-ia assim que o modo de impugnação do despacho do relator seja uma reclamação e não um recurso visto que não se trata de reapreciar uma decisão tomada por quem antes era de si só competente para tal, mas antes “devolver ao órgão originalmente competente os poderes que tem para o conhecimento da questão, podendo este manter, revogar ou alterar a decisão reclamada”.
Em sentido aparentemente crítico deste entendimento Ana Fernanda Alves refere que os efeitos práticos desta leitura dos preceitos levam “a banalização do julgamento por juiz singular de processos que deveriam ser decididos por uma formação de três juízes, sem que tenha havido uma intervenção correctiva dos presidentes dos tribunais administrativos de círculo e do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais; a falta de notificação nos ofícios de notificação das sentenças da correspondente informação quanto à aplicação do art 27º/2 CPTA; a linguagem equívoca deste preceito ao falar de despacho do relator; o facto de ser clara a intenção recursória e de a decisão de um colectivo de juízes em 1ª instância não ser equivalente à decisão de um colectivo de juízes em 2ª instância e por último acaba por impor-se ao sujeito que procura tutela jurisdicional em 2ª instância que omita, como condição de omissão do recurso, a questão da incompetência funcional”.
Assim Tiago Serrão e Marco Caldeira sustentam, relativamente aos recursos interpostos antes do Acórdão do STA nº3/2012 a sua convolação em reclamação; argumentado que tal é justificado pela razão de ser dessa e pela sua utilidade própria, constituir um imperativo do princípio da cooperação processual, orientado à garantia do conhecimento do mérito da causa e o facto de o princípio pro actione, não pode ser desconsiderada a intenção expressamente manifestada nos autos, de impugnar a sentença proferida em primeira instância por juiz singular.
Três cabeças pensam melhor que uma?
            Cumpre agora analisar as vantagens e desvantagens de um modelo de juiz singular por contraposição a um modelo de juiz colectivo nos Tribunais de primeira instância nos litígios administrativos, passando pela solução adoptada recentemente no nosso ordenamento.
Como aponta Ana Neves o julgamento por juiz singular de litígios jurídico-administrativo é uma realidade que encontra paralelo noutros ordenamentos jurídicos, refira-se apenas síntese: “ Em França entre 2003- 2013, cerca de 60% dos processos dos tribunaux administratif, tribunais em regra de primeira instância foram julgados por juiz singular” (…) Na Alemanha “o Código de Processo judicial Administrativo estabelece a regra de julgamento por juiz singular, salvo se o caso suscitar particulares dificuldades de facto ou de direito ou se tiver relevância fundamental”(…) “a Itália já fi diversas vezes interpelada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ( doravante TEDH) por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável (art 6º/1 Carta Europeia dos Direitos do Homem, em diante CEDH), promoveu entre outras medidas a extensão do recurso ao juiz singular”.
Como aponta a referida autora a adopção de um modelo de juiz singular é mais propicia a assegurar às partes uma decisão em período razoável art 6º CEDH, contribuindo para a “credibilidade e efectividade da justiça”[7]. No mesmo sentido sustenta Sofia David que não obstante eventuais perdas de garantias de ponderação da decisão que seriam mais sólidas através de uma decisão em colectivo, o contrabalanço feito continua a ser positivo “ a condução do processo e o julgamento levados a cabo apenas por juiz singular permite uma facilitação na gestão do processo e maior rapidez na tramitação processual” conduzindo a uma maior racionalização e a um uso mais eficiente dos recursos públicos.
É por último lugar de referir que a proposta de Sofia David, de adopção do modelo de juiz singular em tribunais de círculo foi acolhida pela legislação actualmente em vigor, tendo tal como sugerido pela magistrada sido revogados os arts 40º/ 2 e 3 ETAF e sendo a actual redacção do art 40º/1 a propugnada pela autora[8]. Existindo nos art 41º ETAF e 93º CPTA uma “válvula de escape”, admitindo a possibilidade de julgamento nos tribunais de círculo com tribunal colectivo, por despacho fundamento do juiz quando a especial complexidade do litígio assim o justifique é, como refere Ana Neves, reconhecidamente um retrocesso do princípio da colegialidade mas justificado pela ideia de racionalidade, uma abordagem que tem em consideração a grande diversidade de dificuldade de casos e que não se justifica a excessiva alocação de meios a casos relativamente simples em detrimento de todo o sistema.

Bibliografia:
DAVID, Sofia “Começado e não acabado, vale por estragado: o que se tentou mudar com o novo ETAF e CPTA”
In “O anteprojecto de revisão do código de processo nos tribunais administrativos e do estatuto dos tribunais administrativos e fiscais em debate”  coordenação Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves, Tiago Serrão,  Lisboa, AAFDL, 2014.
NEVES, Ana Fernanda: “ Tribunais Administrativos de círculo com juiz singular”
SERRÃO, Tiago; CALDEIRA, Marco “As reclamações para a conferência na jurisprudência administrativa: análise crítica” in: O direito. Lisboa, 2013, A. 145, nº 3 (2013)


[1] Art 40º/1 da Lei N.º 13/2002, de 19 De Fevereiro, alterada pela lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro 
[2] Art 40º/3 do supra referido diploma
[3] Art 40º/2 do supra referido diploma
[4] A Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho que aprova o Código de Processo Civil dispõe no art 2º:
1 - As referências, constantes de qualquer diploma, ao processo declarativo ordinário, sumário ou sumaríssimo consideram-se feitas para o processo declarativo comum.
2 - Nos processos de natureza civil não previstos no Código de Processo Civil, as referências feitas ao tribunal colectivo, que deva intervir nos termos previstos neste Código, consideram-se feitas ao juiz singular, com as necessárias adaptações
…”
[5] Acórdão de Pleno STA 05/07/2012
[6] Acórdão da 1ª Secção do STA 30/04/2013, Proc. º 0532/13
[7] Em 1986 o Comité de Ministros do Conselho da Europa reomendou a adopção em primeira instência de julgamento por juiz singular- “Recomendation Nº R (86) 12 Concerning Measures to PRevent and Reduce Excessive Worload in the Courts” 399ª reunião, semelhante recomendação conta ainda do “Compendium for Best practises on time management of judicial proceedings”, 08/12/2006 da Comissão para a Eficiência da Justiça do Conselho da Europa, ponto, 5.5
[8] 40º/1 “Excepto nos casos em que a lei processual administrativa preveja o julgamento com formação alargada, os tribunais administrativos de círculo funcionam apenas com um juiz singular, a cada juiz competindo a decisão, de facto e de direito dos processos que lhe sejam distribuídos”