terça-feira, 18 de dezembro de 2018

A Formação de Três Juízes- Três Cabeças, um juiz?


A Formação de Três Juízes- Três Cabeças, um juiz?

Introdução
A questão principal será a de perceber qual a formação de julgamento, se juiz singular, ou o juiz em colectivo, serve, em geral, melhor a prestação do serviço público da justiça pelos tribunais administrativos de círculo e como se contextualiza o julgamento por juiz singular no espaço de outros ordenamentos ou compreensões jurídicos
Importa primeiro sublinhar que na prévia iteração do ETAF a regra de julgamento das causas nos tribunais administrativos de círculo plasmada no art 40º do ETAF era a do julgamento no facto e direito, por juiz singular[1]. Contudo a existência de elevado número das então acções administrativas especiais aliado ao facto de que elas muitas vezes gerarem um valor de causa superior ao da alçada redundava frequentemente em que o julgamento fosse levado a cabo por uma “formação de três juízes”[2].
Já no caso das então acções administrativas comuns que seguissem a forma de processo ordinário, o julgamento da matéria de facto era feito, se assim fosse requerido pelas partes e também desde que nenhuma das partes requeresse a gravação da prova, em tribunal colectivo[3], até à revisão do CPC[4].

Da Teoria à Prática
É relevante ainda analisar as considerações de Sofia David (Desembargadora do TCA- Sul) pelas observações que a sua experiência profissional pode oferecer em contraposição e complemento a exposições doutrinárias. Argumenta a magistrada que ao existir a excepção do então art 40º/3 ETAF, à luz do meio processual predominante que à data era a acção administrativa especial visto ser esta a forma a seguir quando se visava a impugnação de actos administrativos, inclusive quando se pretendesse cumular o pedido com outros que correspondessem a outras formas processuais, sempre redundaria numa acção especial (arts 4º e 5º do então CPTA)
Conforme resultava do então art 46º CTPTA a acção administrativa especial acompassava o grosso dos processos submetidos a juízo. Assim, observa a magistrada que dado que a impugnação de actos administrativos pressupunha quase sempre a defesa de bens insusceptíveis de avaliação, por força do critério supletivo art 34º CPTA o valor da causa era quase sempre indeterminável e como tal- superior à alçada do TCA accionando assim a “excepção” do art 40º/3 e levando à necessidade de um colectivo de três juízes.
O resultado foi a perversão da “declarada regra do juiz singular, na excepção que se tornou o modelo-base, do tribunal em formação de três juízes”.
Como reconta a magistrada aquando da introdução da reforma de 2004 era expectante que, no quotidiano dos tribunais que devido à “regra geral” estabelecida no então art 40º/1 de que as acções que corressem nos Tribunais de círculo fossem conhecidas por juiz singulares. Contudo cedo o “feitiço se quebrou” devido à “excepção” contida no art 40º/3 como já foi supra explanado o grosso das acções administrativas decorria sob forma de acção especial exigindo o julgamento de facto e direito por uma formação de três juízes contribuindo grandemente para delongas no processo. Com a exasperante agravante que, na experiência da magistrada, muito frequentemente visava-se a impugnação de actos de administrativos com um conteúdo económico relativamente baixo e nos quais era invocada factualidade “sem especial complexidade que já havia sido tratada de forma sedimentada por tribunais superiores” contudo dado o facto de estas acções serem de valor indeterminável sendo aplicável o art 34º CPTA fazia com que forçosamente tivessem forçosamente de ser julgadas em formação de três juízes.
Consequentemente esta realidade conduziu a que na praxis dos tribunais de círculo o julgamento de facto e de direito fosse levado a cabo pelo relator ao abrigo do art 27º/i) CPTA. E caso houvesse lugar a recurso para o TCA das decisões proferidas pelo relator do processo, elas eram normalmente (pelo menos segundo a autora) admitidos em, sem que se exigisse a reclamação (ou recurso como adiante se verá) para conferência como previsto nos termos do art 27º/2 CPTA.
            Diga-se brevemente a título pessoal que parece tratar-se de um mecanismo “inventivo” encontrado na prática dos tribunais para por motivos de ordem de economia e de celeridade na realidade submeteram estes litígios apenas a juiz singular- o relator processos que jamais justificariam dada a sua reduzida complexidade de ser submetido a um colectivo mas que sempre o teriam que ser por força do sistema tal qual desenhado pelo legislador. É, julga-se, mais uma manifestação indirecta da incongruência que gerava a separação dual de acção administrativa comum e especial, representando esta última em franca contradição linguística o grosso dos litígios submetidos à jurisdição administrativa. Não obstante este “mecanismo” não deixa de ter alguma artificialidade quando confrontado com a então letra da lei esta alegada “prática não escrita” de se permitir proceder para recurso de TCA (sem lançar mão do art 27º/2 CPTA) uma decisão que formalmente deveria ter sido decidia em formação, mas que materialmente foi decidido pelo relator, em juízo singular.


Da “Reclamação” para Formação de Três Juízes
            Relativamente à questão de saber se a ação de execução de sentença de anulação deve ser julgada por juiz singular, como constava do art 40º/1 do antigo ETAF, o TCA Sul no Acórdão de 5/12/2013 proc. Nº09508/12 considerou que “ as regras que o ETAF e o CPTA criaram para a acção administrativa especial e para a competência de formação de três juízes são únicas, apenas aplicáveis a este tipo de acção, não se alargam aos demais meios processuais e designadamente ao processo executivo”, sendo pois a regra nestas matérias de decisão por juiz singular, existindo a possibilidade do juiz encarregado do processo optar por submeter o processo a decisão alargada de três juízes se a complexidade deste assim o justificar- não obstante parece resultar do Acórdão o julgamento do processo segue a regra do processo declarativo.
            O motivo determinante invocado pelo legislador para reafirmar e estender a regra do julgamento do juiz singular, como referido, reside na prática do funcionamento do tribunal em juiz singular quando, à luz da então redacção arts 40º/ 3 do ETAF e do art 27º do CPTA, tal não seria possível. A discussão dizia respeito à aplicação do art 27º/1 i) do ETAF de acordo com o qual o juiz relator pode proferir decisão apenas no caso de ser simples a questão ou questões a decidir e no caso de ser manifestamente infundada a pretensão deduzida. Também o art 27º nº 2 segundo o qual, dos “despachos do relator (que não sejam de mero expediente) cabe reclamação para conferência” pareceria que estava aqui em causa o “despacho” proferido pelo juiz, pelo qual decide não submeter a causa ao julgamento “ da formação de três juízes”; contudo este despacho mesmo não tendo sido emitido está claro implícito na sentença do juiz singular.
O STA, no Acórdão uniformizador de jurisprudência nº 420/2012[5], bem como no Acórdão nº 3/2012[6] pronunciou-se no sentido de ser devida a reclamação para a conferência nos termos do art 27º/2 das decisões “do juiz relator sobre o mérito da causa, proferidas sob a invocação dos poderes conferidos no art 27º/1 i) CPTA” e não recurso. A detecção pelas partes da violação destas normas (arts 40º/3 ETAF e art 27º/ 1 i) levava a que suscitassem o julgamento por uma formação de três juízes através da reclamação para conferência. Não o tendo sido feito no prazo legal, não seria possível a convolação de recurso interposto, mesmo dentro do prazo- daqui surgiram um série de Acórdãos que rejeitam recursos reiterando esta jurisprudência do STA.
Também o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 846/2013 bem como no Acórdão nº 486/2014 considerou que “ a exigência de reclamação para conferência, não só não impede a intervenção de um segundo grau de jurisdição, como reforça o número de reapreciações das questões em discussão, pelo que não tem qualquer fundamento a invocação duma violação ou sequer de uma restrição do direito ao recurso” adiante-se desde já contudo que é dúbio para alguns autores, como Ana Fernanda Neves que a norma em causa como é interpretada pelo STA e TC assegure de facto um duplo grau de jurisdição.
Sobre esta temática Sofia David assinala que a formação de três juízes corresponde a uma nova figura processual até então sem paralelo no processo civil onde existem tribunais singulares, ou o julgamento feito por juiz singular, e os tribunais colectivos, com julgamento feito por três juízes (o relator e dois adjuntos).
Configura pois autora a formação de três juízes como uma figura autónoma do tribunal colectivo (que julgaria as então acções administrativas comuns), tratando-se de um órgão colegial, que decide em conferência quer a fixação da matéria factual como de Direito inclui um relator (a quem o processo foi distribuído) e dois adjuntos, para a qual se reclama dos despachos e decisões do relator.
Entendendo que nos casos do então art 40º/3 ETAF a “competência originária para o funcionamento dos tribunais de círculo é a da formação de três juízes, que conhece de facto e de direito”. Argumentando que desta forma faria sentido a disposição constante do art 27º/2 CPTA ao estipular que dos despachos do relator cabe reclamação para conferência. Justificar-se-ia assim que o modo de impugnação do despacho do relator seja uma reclamação e não um recurso visto que não se trata de reapreciar uma decisão tomada por quem antes era de si só competente para tal, mas antes “devolver ao órgão originalmente competente os poderes que tem para o conhecimento da questão, podendo este manter, revogar ou alterar a decisão reclamada”.
Em sentido aparentemente crítico deste entendimento Ana Fernanda Alves refere que os efeitos práticos desta leitura dos preceitos levam “a banalização do julgamento por juiz singular de processos que deveriam ser decididos por uma formação de três juízes, sem que tenha havido uma intervenção correctiva dos presidentes dos tribunais administrativos de círculo e do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais; a falta de notificação nos ofícios de notificação das sentenças da correspondente informação quanto à aplicação do art 27º/2 CPTA; a linguagem equívoca deste preceito ao falar de despacho do relator; o facto de ser clara a intenção recursória e de a decisão de um colectivo de juízes em 1ª instância não ser equivalente à decisão de um colectivo de juízes em 2ª instância e por último acaba por impor-se ao sujeito que procura tutela jurisdicional em 2ª instância que omita, como condição de omissão do recurso, a questão da incompetência funcional”.
Assim Tiago Serrão e Marco Caldeira sustentam, relativamente aos recursos interpostos antes do Acórdão do STA nº3/2012 a sua convolação em reclamação; argumentado que tal é justificado pela razão de ser dessa e pela sua utilidade própria, constituir um imperativo do princípio da cooperação processual, orientado à garantia do conhecimento do mérito da causa e o facto de o princípio pro actione, não pode ser desconsiderada a intenção expressamente manifestada nos autos, de impugnar a sentença proferida em primeira instância por juiz singular.
Três cabeças pensam melhor que uma?
            Cumpre agora analisar as vantagens e desvantagens de um modelo de juiz singular por contraposição a um modelo de juiz colectivo nos Tribunais de primeira instância nos litígios administrativos, passando pela solução adoptada recentemente no nosso ordenamento.
Como aponta Ana Neves o julgamento por juiz singular de litígios jurídico-administrativo é uma realidade que encontra paralelo noutros ordenamentos jurídicos, refira-se apenas síntese: “ Em França entre 2003- 2013, cerca de 60% dos processos dos tribunaux administratif, tribunais em regra de primeira instância foram julgados por juiz singular” (…) Na Alemanha “o Código de Processo judicial Administrativo estabelece a regra de julgamento por juiz singular, salvo se o caso suscitar particulares dificuldades de facto ou de direito ou se tiver relevância fundamental”(…) “a Itália já fi diversas vezes interpelada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ( doravante TEDH) por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável (art 6º/1 Carta Europeia dos Direitos do Homem, em diante CEDH), promoveu entre outras medidas a extensão do recurso ao juiz singular”.
Como aponta a referida autora a adopção de um modelo de juiz singular é mais propicia a assegurar às partes uma decisão em período razoável art 6º CEDH, contribuindo para a “credibilidade e efectividade da justiça”[7]. No mesmo sentido sustenta Sofia David que não obstante eventuais perdas de garantias de ponderação da decisão que seriam mais sólidas através de uma decisão em colectivo, o contrabalanço feito continua a ser positivo “ a condução do processo e o julgamento levados a cabo apenas por juiz singular permite uma facilitação na gestão do processo e maior rapidez na tramitação processual” conduzindo a uma maior racionalização e a um uso mais eficiente dos recursos públicos.
É por último lugar de referir que a proposta de Sofia David, de adopção do modelo de juiz singular em tribunais de círculo foi acolhida pela legislação actualmente em vigor, tendo tal como sugerido pela magistrada sido revogados os arts 40º/ 2 e 3 ETAF e sendo a actual redacção do art 40º/1 a propugnada pela autora[8]. Existindo nos art 41º ETAF e 93º CPTA uma “válvula de escape”, admitindo a possibilidade de julgamento nos tribunais de círculo com tribunal colectivo, por despacho fundamento do juiz quando a especial complexidade do litígio assim o justifique é, como refere Ana Neves, reconhecidamente um retrocesso do princípio da colegialidade mas justificado pela ideia de racionalidade, uma abordagem que tem em consideração a grande diversidade de dificuldade de casos e que não se justifica a excessiva alocação de meios a casos relativamente simples em detrimento de todo o sistema.

Bibliografia:
DAVID, Sofia “Começado e não acabado, vale por estragado: o que se tentou mudar com o novo ETAF e CPTA”
In “O anteprojecto de revisão do código de processo nos tribunais administrativos e do estatuto dos tribunais administrativos e fiscais em debate”  coordenação Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves, Tiago Serrão,  Lisboa, AAFDL, 2014.
NEVES, Ana Fernanda: “ Tribunais Administrativos de círculo com juiz singular”
SERRÃO, Tiago; CALDEIRA, Marco “As reclamações para a conferência na jurisprudência administrativa: análise crítica” in: O direito. Lisboa, 2013, A. 145, nº 3 (2013)


[1] Art 40º/1 da Lei N.º 13/2002, de 19 De Fevereiro, alterada pela lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro 
[2] Art 40º/3 do supra referido diploma
[3] Art 40º/2 do supra referido diploma
[4] A Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho que aprova o Código de Processo Civil dispõe no art 2º:
1 - As referências, constantes de qualquer diploma, ao processo declarativo ordinário, sumário ou sumaríssimo consideram-se feitas para o processo declarativo comum.
2 - Nos processos de natureza civil não previstos no Código de Processo Civil, as referências feitas ao tribunal colectivo, que deva intervir nos termos previstos neste Código, consideram-se feitas ao juiz singular, com as necessárias adaptações
…”
[5] Acórdão de Pleno STA 05/07/2012
[6] Acórdão da 1ª Secção do STA 30/04/2013, Proc. º 0532/13
[7] Em 1986 o Comité de Ministros do Conselho da Europa reomendou a adopção em primeira instência de julgamento por juiz singular- “Recomendation Nº R (86) 12 Concerning Measures to PRevent and Reduce Excessive Worload in the Courts” 399ª reunião, semelhante recomendação conta ainda do “Compendium for Best practises on time management of judicial proceedings”, 08/12/2006 da Comissão para a Eficiência da Justiça do Conselho da Europa, ponto, 5.5
[8] 40º/1 “Excepto nos casos em que a lei processual administrativa preveja o julgamento com formação alargada, os tribunais administrativos de círculo funcionam apenas com um juiz singular, a cada juiz competindo a decisão, de facto e de direito dos processos que lhe sejam distribuídos”

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