A Formação de Três Juízes- Três
Cabeças, um juiz?
Introdução
A questão principal será a de perceber qual a
formação de julgamento, se juiz singular, ou o juiz em colectivo, serve, em
geral, melhor a prestação do serviço público da justiça pelos tribunais
administrativos de círculo e como se contextualiza o julgamento por juiz
singular no espaço de outros ordenamentos ou compreensões jurídicos
Importa primeiro sublinhar que na prévia iteração do
ETAF a regra de julgamento das causas nos tribunais administrativos de círculo
plasmada no art 40º do ETAF era a do julgamento no facto e direito, por juiz
singular[1].
Contudo a existência de elevado número das então acções administrativas
especiais aliado ao facto de que elas muitas vezes gerarem um valor de causa superior
ao da alçada redundava frequentemente em que o julgamento fosse levado a cabo
por uma “formação de três juízes”[2].
Já
no caso das então acções administrativas comuns que seguissem a forma de
processo ordinário, o julgamento da matéria de facto era feito, se assim fosse
requerido pelas partes e também desde que nenhuma das partes requeresse a
gravação da prova, em tribunal colectivo[3],
até à revisão do CPC[4].
Da Teoria à Prática
É relevante ainda analisar as considerações de Sofia
David (Desembargadora do TCA- Sul) pelas observações que a sua experiência
profissional pode oferecer em contraposição e complemento a exposições
doutrinárias. Argumenta a magistrada que ao existir a excepção do então art
40º/3 ETAF, à luz do meio processual predominante que à data era a acção
administrativa especial visto ser esta a forma a seguir quando se visava a
impugnação de actos administrativos, inclusive quando se pretendesse cumular o
pedido com outros que correspondessem a outras formas processuais, sempre
redundaria numa acção especial (arts 4º e 5º do então CPTA)
Conforme
resultava do então art 46º CTPTA a acção administrativa especial acompassava o
grosso dos processos submetidos a juízo. Assim, observa a magistrada que dado
que a impugnação de actos administrativos pressupunha quase sempre a defesa de
bens insusceptíveis de avaliação, por força do critério supletivo art 34º CPTA
o valor da causa era quase sempre indeterminável e como tal- superior à alçada
do TCA accionando assim a “excepção” do art 40º/3 e levando à necessidade de um
colectivo de três juízes.
O
resultado foi a perversão da “declarada regra do juiz singular, na excepção que
se tornou o modelo-base, do tribunal em formação de três juízes”.
Como reconta a magistrada aquando da introdução da
reforma de 2004 era expectante que, no quotidiano dos tribunais que devido à
“regra geral” estabelecida no então art 40º/1 de que as acções que corressem
nos Tribunais de círculo fossem conhecidas por juiz singulares. Contudo cedo o
“feitiço se quebrou” devido à “excepção” contida no art 40º/3 como já foi supra explanado o grosso das acções
administrativas decorria sob forma de acção especial exigindo o julgamento de
facto e direito por uma formação de três juízes contribuindo grandemente para
delongas no processo. Com a exasperante agravante que, na experiência da
magistrada, muito frequentemente visava-se a impugnação de actos de
administrativos com um conteúdo económico relativamente baixo e nos quais era
invocada factualidade “sem especial complexidade que já havia sido tratada de
forma sedimentada por tribunais superiores” contudo dado o facto de estas
acções serem de valor indeterminável sendo aplicável o art 34º CPTA fazia com
que forçosamente tivessem forçosamente de ser julgadas em formação de três
juízes.
Consequentemente
esta realidade conduziu a que na praxis
dos tribunais de círculo o julgamento de facto e de direito fosse levado a cabo
pelo relator ao abrigo do art 27º/i) CPTA. E caso houvesse lugar a recurso para
o TCA das decisões proferidas pelo relator do processo, elas eram normalmente
(pelo menos segundo a autora) admitidos em, sem que se exigisse a reclamação
(ou recurso como adiante se verá) para conferência como previsto nos termos do
art 27º/2 CPTA.
Diga-se brevemente a título pessoal
que parece tratar-se de um mecanismo “inventivo” encontrado na prática dos
tribunais para por motivos de ordem de economia e de celeridade na realidade
submeteram estes litígios apenas a juiz singular- o relator processos que
jamais justificariam dada a sua reduzida complexidade de ser submetido a um
colectivo mas que sempre o teriam que ser por força do sistema tal qual desenhado
pelo legislador. É, julga-se, mais uma manifestação indirecta da incongruência
que gerava a separação dual de acção administrativa comum e especial,
representando esta última em franca contradição linguística o grosso dos
litígios submetidos à jurisdição administrativa. Não obstante este “mecanismo”
não deixa de ter alguma artificialidade quando confrontado com a então letra da
lei esta alegada “prática não escrita” de se permitir proceder para recurso de
TCA (sem lançar mão do art 27º/2 CPTA) uma decisão que formalmente deveria ter
sido decidia em formação, mas que materialmente foi decidido pelo relator, em
juízo singular.
Da “Reclamação” para Formação de
Três Juízes
Relativamente à questão de saber se
a ação de execução de sentença de anulação deve ser julgada por juiz singular,
como constava do art 40º/1 do antigo ETAF, o TCA Sul no Acórdão de 5/12/2013
proc. Nº09508/12 considerou que “ as
regras que o ETAF e o CPTA criaram para a acção administrativa especial e para
a competência de formação de três juízes são únicas, apenas aplicáveis a este
tipo de acção, não se alargam aos demais meios processuais e designadamente ao
processo executivo”, sendo pois a regra nestas matérias de decisão por juiz
singular, existindo a possibilidade do juiz encarregado do processo optar por
submeter o processo a decisão alargada de três juízes se a complexidade deste
assim o justificar- não obstante parece resultar do Acórdão o julgamento do
processo segue a regra do processo declarativo.
O motivo determinante invocado pelo
legislador para reafirmar e estender a regra do julgamento do juiz singular,
como referido, reside na prática do funcionamento do tribunal em juiz singular
quando, à luz da então redacção arts 40º/ 3 do ETAF e do art 27º do CPTA, tal
não seria possível. A discussão dizia respeito à aplicação do art 27º/1 i) do
ETAF de acordo com o qual o juiz relator pode proferir decisão apenas no caso
de ser simples a questão ou questões a decidir e no caso de ser manifestamente
infundada a pretensão deduzida. Também o art 27º nº 2 segundo o qual, dos “despachos do relator (que não sejam de
mero expediente) cabe reclamação para
conferência” pareceria que estava aqui em causa o “despacho” proferido pelo
juiz, pelo qual decide não submeter a causa ao julgamento “ da formação de três
juízes”; contudo este despacho mesmo não tendo sido emitido está claro
implícito na sentença do juiz singular.
O STA, no Acórdão uniformizador de jurisprudência nº
420/2012[5],
bem como no Acórdão nº 3/2012[6]
pronunciou-se no sentido de ser devida a reclamação para a conferência nos
termos do art 27º/2 das decisões “do juiz
relator sobre o mérito da causa, proferidas sob a invocação dos poderes
conferidos no art 27º/1 i) CPTA” e não recurso. A detecção pelas partes da
violação destas normas (arts 40º/3 ETAF e art 27º/ 1 i) levava a que suscitassem
o julgamento por uma formação de três juízes através da reclamação para
conferência. Não o tendo sido feito no prazo legal, não seria possível a
convolação de recurso interposto, mesmo dentro do prazo- daqui surgiram um
série de Acórdãos que rejeitam recursos reiterando esta jurisprudência do STA.
Também o Tribunal Constitucional no Acórdão nº
846/2013 bem como no Acórdão nº 486/2014 considerou que “ a exigência de reclamação para conferência, não só não impede a
intervenção de um segundo grau de jurisdição, como reforça o número de
reapreciações das questões em discussão, pelo que não tem qualquer fundamento a
invocação duma violação ou sequer de uma restrição do direito ao recurso” adiante-se
desde já contudo que é dúbio para alguns autores, como Ana Fernanda Neves que a
norma em causa como é interpretada pelo STA e TC assegure de facto um duplo
grau de jurisdição.
Sobre esta temática Sofia David assinala que a
formação de três juízes corresponde a uma nova figura processual até então sem
paralelo no processo civil onde existem tribunais singulares, ou o julgamento
feito por juiz singular, e os tribunais colectivos, com julgamento feito por
três juízes (o relator e dois adjuntos).
Configura pois autora a formação de três juízes como
uma figura autónoma do tribunal colectivo (que julgaria as então acções
administrativas comuns), tratando-se de um órgão colegial, que decide em
conferência quer a fixação da matéria factual como de Direito inclui um relator
(a quem o processo foi distribuído) e dois adjuntos, para a qual se reclama dos
despachos e decisões do relator.
Entendendo que nos casos do então art 40º/3 ETAF a
“competência originária para o funcionamento dos tribunais de círculo é a da
formação de três juízes, que conhece de facto e de direito”. Argumentando que
desta forma faria sentido a disposição constante do art 27º/2 CPTA ao estipular
que dos despachos do relator cabe reclamação para conferência. Justificar-se-ia
assim que o modo de impugnação do despacho do relator seja uma reclamação e não
um recurso visto que não se trata de reapreciar uma decisão tomada por quem
antes era de si só competente para tal, mas antes “devolver ao órgão
originalmente competente os poderes que tem para o conhecimento da questão,
podendo este manter, revogar ou alterar a decisão reclamada”.
Em sentido aparentemente crítico deste entendimento
Ana Fernanda Alves refere que os efeitos práticos desta leitura dos preceitos
levam “a banalização do julgamento por juiz singular de processos que deveriam
ser decididos por uma formação de três juízes, sem que tenha havido uma
intervenção correctiva dos presidentes dos tribunais administrativos de círculo
e do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais; a falta de
notificação nos ofícios de notificação das sentenças da correspondente
informação quanto à aplicação do art 27º/2 CPTA; a linguagem equívoca deste
preceito ao falar de despacho do relator; o facto de ser clara a intenção recursória
e de a decisão de um colectivo de juízes em 1ª instância não ser equivalente à
decisão de um colectivo de juízes em 2ª instância e por último acaba por
impor-se ao sujeito que procura tutela jurisdicional em 2ª instância que omita,
como condição de omissão do recurso, a questão da incompetência funcional”.
Assim Tiago Serrão e Marco Caldeira sustentam,
relativamente aos recursos interpostos antes do Acórdão do STA nº3/2012 a sua
convolação em reclamação; argumentado que tal é justificado pela razão de ser
dessa e pela sua utilidade própria, constituir um imperativo do princípio da
cooperação processual, orientado à garantia do conhecimento do mérito da causa
e o facto de o princípio pro actione,
não pode ser desconsiderada a intenção expressamente manifestada nos autos, de
impugnar a sentença proferida em primeira instância por juiz singular.
Três cabeças pensam melhor que uma?
Cumpre agora analisar as vantagens e desvantagens de
um modelo de juiz singular por contraposição a um modelo de juiz colectivo nos
Tribunais de primeira instância nos litígios administrativos, passando pela
solução adoptada recentemente no nosso ordenamento.
Como aponta Ana Neves o julgamento por juiz singular
de litígios jurídico-administrativo é uma realidade que encontra paralelo
noutros ordenamentos jurídicos, refira-se apenas síntese: “ Em França entre
2003- 2013, cerca de 60% dos processos dos
tribunaux administratif, tribunais em regra de primeira instância foram
julgados por juiz singular” (…) Na Alemanha “o Código de Processo judicial
Administrativo estabelece a regra de julgamento por juiz singular, salvo se o
caso suscitar particulares dificuldades de facto ou de direito ou se tiver
relevância fundamental”(…) “a Itália já fi diversas vezes interpelada pelo
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ( doravante TEDH) por violação do
direito a uma decisão judicial em prazo razoável (art 6º/1 Carta Europeia dos
Direitos do Homem, em diante CEDH), promoveu entre outras medidas a extensão do
recurso ao juiz singular”.
Como aponta a referida autora a adopção de um modelo
de juiz singular é mais propicia a assegurar às partes uma decisão em período
razoável art 6º CEDH, contribuindo para a “credibilidade e efectividade da
justiça”[7].
No mesmo sentido sustenta Sofia David que não obstante eventuais perdas de
garantias de ponderação da decisão que seriam mais sólidas através de uma
decisão em colectivo, o contrabalanço feito continua a ser positivo “ a
condução do processo e o julgamento levados a cabo apenas por juiz singular
permite uma facilitação na gestão do processo e maior rapidez na tramitação
processual” conduzindo a uma maior racionalização e a um uso mais eficiente dos
recursos públicos.
É por último lugar de referir que a proposta de
Sofia David, de adopção do modelo de juiz singular em tribunais de círculo foi
acolhida pela legislação actualmente em vigor, tendo tal como sugerido pela
magistrada sido revogados os arts 40º/ 2 e 3 ETAF e sendo a actual redacção do
art 40º/1 a propugnada pela autora[8].
Existindo nos art 41º ETAF e 93º CPTA uma “válvula de escape”, admitindo a
possibilidade de julgamento nos tribunais de círculo com tribunal colectivo,
por despacho fundamento do juiz quando a especial complexidade do litígio assim
o justifique é, como refere Ana Neves, reconhecidamente um retrocesso do
princípio da colegialidade mas justificado pela ideia de racionalidade, uma
abordagem que tem em consideração a grande diversidade de dificuldade de casos
e que não se justifica a excessiva alocação de meios a casos relativamente
simples em detrimento de todo o sistema.
Bibliografia:
DAVID,
Sofia “Começado e não acabado, vale por estragado: o que se tentou mudar com o
novo ETAF e CPTA”
In “O anteprojecto de revisão do código de processo nos
tribunais administrativos e do estatuto dos tribunais administrativos e fiscais
em debate” coordenação Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves, Tiago
Serrão, Lisboa, AAFDL, 2014.
NEVES, Ana Fernanda: “ Tribunais Administrativos de
círculo com juiz singular”
SERRÃO, Tiago; CALDEIRA, Marco “As reclamações para
a conferência na jurisprudência administrativa: análise crítica” in: O direito. Lisboa, 2013, A. 145, nº
3 (2013)
[1] Art 40º/1 da Lei N.º 13/2002, de 19 De Fevereiro, alterada
pela lei n.º 107-D/2003, de 31 de
Dezembro
[2] Art 40º/3 do supra referido
diploma
[3] Art 40º/2 do supra referido
diploma
[4] A Lei n.º 41/2013, de 26 de
Junho que aprova o Código de Processo Civil dispõe no art 2º:
“ 1 - As referências, constantes de qualquer diploma, ao processo declarativo ordinário, sumário ou sumaríssimo consideram-se feitas para o processo declarativo comum.
2 - Nos processos de natureza civil não previstos no Código de Processo Civil, as referências feitas ao tribunal colectivo, que deva intervir nos termos previstos neste Código, consideram-se feitas ao juiz singular, com as necessárias adaptações …”
“ 1 - As referências, constantes de qualquer diploma, ao processo declarativo ordinário, sumário ou sumaríssimo consideram-se feitas para o processo declarativo comum.
2 - Nos processos de natureza civil não previstos no Código de Processo Civil, as referências feitas ao tribunal colectivo, que deva intervir nos termos previstos neste Código, consideram-se feitas ao juiz singular, com as necessárias adaptações …”
[5] Acórdão de Pleno STA 05/07/2012
[6] Acórdão da 1ª Secção do STA
30/04/2013, Proc. º 0532/13
[7] Em 1986 o Comité de Ministros do
Conselho da Europa reomendou a adopção em primeira instência de julgamento por
juiz singular- “Recomendation Nº R (86) 12 Concerning Measures to PRevent and
Reduce Excessive Worload in the Courts” 399ª reunião, semelhante recomendação
conta ainda do “Compendium for Best practises on time management of judicial
proceedings”, 08/12/2006 da Comissão para a Eficiência da Justiça do Conselho
da Europa, ponto, 5.5
[8] 40º/1 “Excepto nos casos em que
a lei processual administrativa preveja o julgamento com formação alargada, os
tribunais administrativos de círculo funcionam apenas com um juiz singular, a
cada juiz competindo a decisão, de facto e de direito dos processos que lhe
sejam distribuídos”
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