terça-feira, 18 de dezembro de 2018


Esquizofrenia do Supremo Tribunal Administrativo 
No âmbito das reformas de 2002/2004 e, depois, 2015, houve várias alterações introduzidas no Contencioso Administrativo que traduziram aspetos positivos. No entanto, há uma matéria que não foi alvo de reforma - para muitos autores, mal. Em causa está a organização judiciária dos tribunais administrativos e tributários. 
O problema centra-se principalmente nas competências atribuídas por lei ao Supremo Tribunal Administrativo (STA). 
Para melhor enquadrar a questão, transcreve-se o artigo 24º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), referente às competências da Secção de Contencioso Administrativo do STA: 
1 - Compete à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo conhecer:  
a) Dos processos em matéria administrativa relativos a ações ou omissões das seguintes entidades:  
i) Presidente da República;  
ii) Assembleia da República e seu Presidente;  
iii) Conselho de Ministros;  
iv) Primeiro-Ministro;  
v) Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal Administrativo, Tribunal de Contas, Tribunais Centrais Administrativos, assim como dos respetivos Presidentes;  
vi) Conselho Superior de Defesa Nacional;  
vii) Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e seu Presidente;  
viii) Procurador-Geral da República;  
ix) Conselho Superior do Ministério Público;  
b) Dos processos relativos a eleições previstas nesta lei;  
c) Dos pedidos de adoção de providências cautelares relativos a processos da sua competência;  
d) Dos pedidos relativos à execução das suas decisões;  
e) Dos pedidos cumulados nos processos referidos na alínea a);  
f) Das ações de regresso, fundadas em responsabilidade por danos resultantes do exercício das suas funções, propostas contra juízes do Supremo Tribunal Administrativo e dos tribunais centrais administrativos e magistrados do Ministério Público que exerçam funções junto destes tribunais, ou equiparados;  
g) Dos recursos dos acórdãos que aos tribunais centrais administrativos caiba proferir em primeiro grau de jurisdição;  
h) Dos conflitos de competência entre tribunais administrativos;  
i) De outros processos cuja apreciação lhe seja deferida por lei.  
2 - Compete ainda à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo conhecer dos recursos de revista sobre matéria de direito interpostos de acórdãos da Secção de Contencioso Administrativo dos tribunais centrais administrativos e de decisões dos tribunais administrativos de círculo, segundo o disposto na lei de processo. 
Pela leitura da lista de competências atribuídas por este artigo, constata-se que existe um conjunto de alíneas referentes à apreciação primária de litígios respeitantes a ações ou omissões de determinados órgãos, tidos como especialmente importantes. Nestes litígios, o STA funcionará, por isso, como tribunal de 1ª instância. 
Para VASCO PEREIRA DA SILVA, esta situação representa uma disfunção na organização da Justiça Administrativa, um “desdobramento funcional” ou de “esquizofrenia organizativa” que deve ser eliminado, para se ir ao encontro da intenção do legislador constituinte, de criar uma jurisdição administrativa e fiscal autónoma (212º/3, CRP). A solução deverá passar pelo «“esvaziamento” da competência de 1ª instância do STA, que poderia ser atribuída ao TCA ou aos TAC’s». 
Também MÁRIO TORRES defende que «todos os meios processuais, incluindo os recursos de atos administrativos de membros do governo, se devem iniciar nos tribunais administrativos de círculo, com garantia de um verdadeiro recurso de apelação (com efetivo recurso da matéria de facto) para os tribunais de 2ª instância e com a consagração do STA como tribunal de revista.” Para o autor, «a atual repartição de competências entre o STA e o TCA carece de qualquer fundamentação dogmática», baseando-se num mero juízo de identificação dos processos mais frequentes no STA, para diminuir a sua sobrecarga. Salienta que, contra a solução que defende, apenas pode ser invocado como argumento a «dignidade dos membros do governo». Ora, tal argumento não é procedente, tanto porque, a ser justificado «algum “foro pessoal” seria no âmbito criminal e aí a generalidade dos membros do governo são julgados em tribunais de 1ª instância», como porque «atualmente, no contencioso administrativo, já é possível intentar nos tribunais administrativos de círculo processos de intimação judicial para consulta de processos e passagens de certidões e ações para reconhecimento de direito em que figuram como réus ou requeridos membros do governo, sem que daí resulte qualquer abalo para o seu prestígio.» 
ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA, escreve, no mesmo sentido, que «a atual organização judiciária, no que toca ao TCA e ao STA só se explica pela ideia de que dos atos de altas autoridades só altos tribunais podem conhecer». Rejeitando esse fundamento, salienta que «a justiça administrativa é uma justiça com a mesma dignidade da que é exercida por qualquer outra ordem de tribunais». Por isso, «todas as questões devem entrar, como é usual, por tribunais de 1ª instância». Em acrescento, um aspecto fundamental: «deve ser o critério da importância das questões a julgar e não a “importância” dos seus autores que deve determinar o seu conhecimento em 1ª instância (...) e ainda as possibilidades de recurso para 2ª instância». 
Parece que DIOGO FREITAS DO AMARAL e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA não demonstram especiais preocupações com o panorama atual, considerando que, face ao regime consagrado no ETAF, «o STA deixa praticamente de funcionar como um tribunal de primeira instância para passar a exercer as competências próprias de um tribunal vocacionado para “funcionar como regulador do sistema, função adequada a uma instância suprema”». No entanto, há que acompanhar VASCO PEREIRA DA SILVA: «o problema está no “praticamente”...». 
Efetivamente, o panorama atual, que se mantém basicamente inalterado desde a criação do TCA, assenta num critério de importância dos autores. Mas coloca-se a questão: há autores mais importantes que outros? Há autores que merecem ver os seus atos ser impugnados diretamente nos tribunais superiores? Há autores que merecem ser protegidos pelos tribunais? 
A resposta, no nosso entendimento, é negativa. O Contencioso Administrativo tem como centro as relações jurídicas administrativas e fiscais, em que a Administração e qualquer particular surgem em pé de igualdade. A proteção de parte da Administração contraria essa lógica, e demonstra um resquício histórico da antiga visão da “Administração toda poderosa”. 
Existe, atualmente, uma complexidade excessiva da organização da justiça administrativa, como afirma CARLOS CADILHA, que é necessário alterar, de modo a ir ao encontro das exigências constitucionais e europeias, proporcionando aos particulares uma efetiva tutela das situações jurídicas próprias. 

Bibliografia: 
AMARAL, DIOGO FREITAS DO, e ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, Almedina, Coimbra, 2004. 
CADILHA, CARLOS, “Ainda a Reforma do Contencioso Administrativo”, in Cadernos de Justiça Administrativa, 2, Março/Abril, 1997. 
OLIVEIRA, ANTÓNIO CÂNDIDO DE, “A Reforma da Organização dos Tribunais Administrativos e Tributários”, in Cadernos de Justiça Administrativa, 22, Julho/Agosto, 2000. 
SILVA, VASCO PEREIRA DA, “Breve Crónica de uma Reforma Anunciada”, in Cadernos de Justiça Administrativa, 1, Janeiro/Fevereiro, 1997. “Vem aí a Reforma do Contencioso Administrativo (!?)”, in Cadernos de Justiça Administrativa, 19, Janeiro/Fevereiro, 2000. O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2013.  
TORRES, MÁRIO, “A Reforma do Contencioso Administrativo: Que Metodologia?”, in Cadernos de Justiça Administrativa, 9, Maio/Junho, 1998. 

Teresa Barrão Gomes Pinto, 27969

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