Os recursos em
contencioso administrativo: notas gerais
Os artigos 140º a 156º do CPTA vêm prever a matéria dos
recursos jurisdicionais em matéria administrativa. Além dos artigos mencionados
recorre-se também às normas do Código de Processo Civil, uma vez que, para além
de ser aplicado supletivamente (artigo 1º CPTA), também serve de ajuda
interpretativa, já que, em alguns aspetos, o regime dos recursos em processo
administrativo se assemelha ao regime em processo civil.
Começarei por analisar questões gerais como a admissibilidade
dos recursos, o tribunal competente, a legitimidade para interpor recursos, a interposição
de recurso e os seus efeitos, a sua tramitação e a decisão. Numa segunda fase
farei uma caracterização breve dos vários tipos de recursos.
1.
Admissibilidade dos recursos
São admitidos recursos de decisões quando o valor do processo
seja superior ao valor da alçada do qual se recorre [como veremos esta regra
apenas se aplica aos recursos de apelação – cfr. ponto 6, a)], desde que, em
razão da decisão, o prejuízo para a parte recorrente seja em valor superior à
metade do valor da alçada desse tribunal. Se existir fundada dúvida quanto ao
valor desse prejuízo atende-se apenas ao valor da causa – assim dispõem o
artigo 142º/1 do CPTA.
Para percebermos se em razão do valor da causa o processo é
passível de recurso, é necessário, em primeiro lugar, determinar esse valor – segundo
o disposto nos artigos 31º e seguintes do CPTA. Depois, há que determinar o
valor da alçada do tribunal - artigo 6º do ETAF conjugado com o artigo 44º da
LOSJ. Em seguida, há que determinar, se possível, o valor do prejuízo sofrido pelo
recorrente.
É afastado este regime no artigo 142º/3 do CPTA que, para
além dos casos previstos no artigo 629º/2 e 3 do CPC, enumera ainda quatro
situações em que a decisão é sempre passível de recurso, sendo estas: 1) quando
haja decisão de improcedência de pedidos de intimação para proteção de
direitos, liberdades e garantias; 2) quando existam decisões proferidas em
matéria sancionatória; 3) quando haja decisão proferidas contra jurisprudência
uniformizada do STA; e 4) quando haja decisão que ponha termo ao processo sem
decidir sobre o mérito da causa.
2.
Tribunais competentes
São, em regra, competentes os tribunais superiores
administrativos.
O TCA conhece dos recursos de apelação das decisões dos
tribunais de círculo e dos tribunais arbitrais [artigo 37º, a) e b) do ETAF]. O
STA só conhece de recursos das decisões proferidas em primeira instância pelo
TCA [artigo 24º/1, g) do ETAF], de decisões proferidas pelo TCA em sede de
recurso de apelação (artigo 150º do CPTA) e nos casos de recurso per saltum das decisões dos tribunais de
primeira instância (artigo 151º do CPTA) – artigo 24º/2 do ETAF.
3.
Legitimidade
A regra geral é a de que, segundo o artigo 141º/1 do CPTA,
podem recorrer da decisão proferida quem tenha sido vencido na ação e ainda o
Ministério Público, contando que a decisão viole princípios constitucionais ou
legais. No entanto, o número 4 deste mesmo artigo vem alargar o campo de legitimidade
a “quem seja direta e efetivamente prejudicado” pela decisão, mesmo que “não
seja parte na causa ou seja apenas parte acessória”. Existe aqui um âmbito de
proteção de quem, mesmo não sendo parte principal da relação sindicada em
tribunal, verá a sua esfera jurídica direta e efetivamente afetada com a
decisão tomada.
Nos números 2 e 3 deste mesmo artigo considera-se a
possibilidade de a parte, que invocou mais de um vício para a impugnação do
ato e beneficiada pela anulação do ato administrativo em causa, possa recorrer da
decisão na parte em que lhe seja desfavorável. Ou seja, o autor da ação de
impugnação pode, mesmo que o ato seja impugnado, recorrer da decisão se não
foram considerados todos os vícios invocados. Isto percebe-se uma vez que o ato
impugnado com base em invalidade formal pode vir a ser renovado pela
Administração. Se a parte assim não o quiser, pode requerer que a decisão do
tribunal seja reformulada passando a impedir a renovação do ato.
4.
Efeitos da interposição do recurso
A regra é a de que a interposição do recurso suspende os
efeitos da decisão da qual se recorre – artigo 143º/1 do CPTA. O número 2 do
artigo 143º do CPTA, consagra os casos em que é atribuído ao recurso efeito
meramente devolutivo.
No entanto, diz o nº3 do artigo 143º do CPTA que, quando a atribuição
de efeito suspensivo à sentença seja demasiado gravoso para a parte vencedora
do litígio ou para interesses por ela prosseguidos, pode o recorrente pedir ao
tribunal que afaste o efeito suspensivo e atribua ao recurso um efeito
meramente devolutivo, possibilitando assim a execução da sentença. Ora isso não
faz grande sentido pois o recorrente terá sempre interesse no efeito suspensivo
da sentença, não fazendo sentido que a parte vencida peça o seu afastamento. Assim,
Mário Aroso de Almeida diz, e com razão, que este artigo deve ser objecto de
uma interpretação correctiva, devendo passar a ser entendido como atribuindo
poder de pedir o efeito meramente devolutivo da interposição de recurso a quem
tenha interesse nele (o que leva naturalmente a entender que a prorrogativa passa
para a parte vencedora).
Nos casos em que é feito o pedido nos termos do nº3, a atribuição
do efeito meramente devolutivo depende de ponderação dos interesses em jogo
(artigo 143º/5 do CPTA), podendo o tribunal tomar algumas providências por
forma a colmatar prejuízos graves que possam ocorrer para a parte vencida
decorrentes da execução da sentença (artigo 143º/4 do CPTA).
5.
Prazo, tramitação e decisão do
recurso
O recurso deve ser interposto, mediante requerimento (artigo
144º/2 do CPTA), no qual se alegam os vícios imputados à decisão e se formulam
conclusões quanto à decisão a tomar. Em caso de imperfeição nas alegações e/ou
conclusões feitas pelo recorrente, pode o juiz relator do tribunal de recurso
proferir despacho de aperfeiçoamento (artigo 146º/4 do CPTA).
O requerimento deve ser apresentado no prazo de 30 dias,
contado de acordo com o artigo 638º do CPC – artigo 144º/1 do CPTA. Nos casos
de processos urgentes o prazo é de 15 dias (artigo 147º/1 do CPTA). Em caso de
contra-alegação, ou seja, quando o recorrido responde à alegação do recorrente,
o prazo é também de 30 dias (artigo 638º/5 e 6 do CPC).
Feito o requerimento, é o juiz do tribunal recorrido, ou
seja, do que emitiu a decisão da qual se recorre, que admite o recurso
ordenando a sua subida (artigo 145º do CPTA).
Nos casos em que, pela complexidade elevada da questão ou por
motivos de conveniência, seja necessário que exista uniformidade
jurisprudencial relativamente a uma certa questão, pode o Presidente do STA ou
do TCA, por sua iniciativa ou por requerimento das partes (artigo 148º/2 do
CPTA), determinar que o julgamento de recurso terá a intervenção de todos os
juízes da secção. A esta situação dá-se o nome de “julgamento ampliado de
recursos” e que tem como finalidade assegurar, a título preventivo, que não
existirão decisões contraditórias relativamente à matéria em causa.
6.
Tipos de recurso
De acordo com o artigo 140º do CPTA, os recursos podem ser
ordinários ou extraordinários.
São ordinários os recursos de apelação para o TCA (artigo
149º do CPTA) e os recursos de revista para o STA (artigos 150º e 151º do
CPTA).
São extraordinários os recursos para uniformização de
jurisprudência (artigo 152º do CPTA) e a revisão (artigo 154º do CPTA).
I.
Recursos de apelação
Constante do artigo 149º do CPTA, o recurso de apelação
permite que se faça uma reapreciação global do litígio, uma vez que o objeto do
recurso incide sobre a matéria de facto e de direito. Por isso, o tribunal de
recurso, neste caso o TCA, funciona como um segundo grau de jurisdição ao
julgar de novo o mérito da causa. No entanto, não deixa o tribunal de recurso
de ter de respeitar o princípio do dispositivo. Assim sendo, só pode conhecer
dos factos alegados pelas partes.
Quando o tribunal recorrido, julgando o mérito da causa, não
conheceu de certas questões que ou se, por qualquer motivo, não conheceu do
pedido da causa, o tribunal de recurso pode, se considerar que não havia
motivos para se ter procedido naquele sentido, pedir a renovação dos meios de
prova e a produção de novas provas de forma a julgar o litígio de forma correta
– artigo 149º/2, 3 e 4 do CPTA.
Regra geral, o tribunal de recurso reaprecia a questão e, se
julgar procedente o recurso, substitui a decisão recorrida pela nova decisão,
mesmo anulando a sentença recorrida.
Mas nem sempre as questões suscitadas resultam numa
tramitação simples. Cabe então fazer uma nota relativamente a pontos
específicos.
Pedindo o recorrente recurso da sentença com base num dos
fundamentos de nulidade do artigo 615º/1 do CPC, ou seja, a) quando o juiz não
tenha assinado a sentença; b) quando não se especifique os fundamentos de facto
e de direito que justificam a decisão; c) quando os fundamentos apresentados
estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade
que torne a decisão ininteligível; d) quando juiz não se pronuncia sobre
questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar
conhecimento; e) quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto
diverso do pedido. São casos em que o vício é meramente formal ou, sendo de
conteúdo material, é de tal maneira evidente e grave que o tribunal de recurso
manda baixar o processo ao tribunal recorrido para sanação do vício em causa.
Quando estamos perante os fundamentos das alíneas b), c) e e), o juiz de
recurso toma logo posição sobre a matéria do recurso, proferindo desde logo uma
decisão fundamentada. No caso da alínea d), o juiz declara sem efeito a decisão
tomada pelo tribunal recorrido.
Quanto às questões prévias apreciadas pelo tribunal
recorrido, diz o artigo 88º/2 do CPTA (que funciona como limite ao artigo
149º/3 do CPTA) que estas só podem ser reapreciadas no âmbito do recurso se 1)
tiverem sido proferidas em despacho saneador e 2) se tiver havido recurso desse
mesmo despacho.
II.
Recurso de revista
Os artigos 150º e 151º do CPTA preveem dois tipos de recurso
de revista: o recurso de revista de decisões proferidas pelo TCA em sede de
recurso e o recurso de revista per saltum.
a) Recurso de revista de decisões
proferidas pelo TCA em sede de recurso
Na origem do CPTA foi criada este tipo de recurso uma vez que
se considerou útil que, em matérias que se afiguram de maior importância e
relevância, o STA possa ter uma intervenção, decidindo e assim orientando os
restantes tribunais quanto ao sentido da jurisprudência. Possibilita-se então
ao recorrente um duplo grau de recurso, reforçando-se a sua proteção no âmbito
do processo administrativo.
Como vimos e, de acordo com o que se retira do artigo 150º/1
do CPTA, cabe ao STA regular e dosear a intervenção que tem nos processos, uma
vez que o critério para que se possa recorrer para o STA neste caso já não diz
respeito ao valor da causa, mas sim à relevância jurídica ou social que esta
possa ter ou quando seja necessária uma melhor aplicação do direito. Assim
podemos constatar que este recurso de revista tem caráter excecional
funcionando como uma válvula de segurança do sistema para casos em que se
considere verdadeiramente necessária uma reapreciação da decisão.
Aqui, não há lugar a novos factos. O STA julga com base nos
factos já existentes e reconhecidos pelos tribunais inferiores e aplica o
regime jurídico que considere adequado de forma definitiva (artigo 150º/3 do
CPTA).
b) Recurso de revista per saltum
Estamos aqui perante um caso em que o recurso se faz
diretamente dos tribunais de círculo para o STA.
Naturalmente, este tipo de recurso tem um carácter
verdadeiramente excecional, o que é comprovado pelos requisitos constantes do
artigo 151º/1 e 2 do CPTA e que têm de se preencher cumulativamente: valor da
causa superior a 500.000€ ou indeterminável e a causa não pode versar sobre
matérias de funcionalismo público ou de segurança social.
Uma vez que nos recursos de revista per saltum apenas se conhece de matéria de direito, as questões de
facto têm de estar assentes. Não o estando, o STA determina que o processo
baixe ao TCA (artigo 151º/4 do CPTA), sendo aí julgado como apelação.
Estando preenchidos os requisitos é o recorrente obrigado a
enveredar por esta via ou pode recorrer ao TCA em recurso de apelação? Tem-se
entendido, nomeadamente por Mário Aroso de Almeida, que está o recorrente
obrigado a recorrer ao STA em revista per
saltum, isto porque, a competência do STA é exclusiva. Nestes casos, se o
recorrente recorrer ao TCA deve este, verificando-se os pressupostos, mandar
subir o caso ao STA, mesmo sem vontade do recorrente.
III.
Recurso de uniformização de
jurisprudência
O objeto deste recurso para o STA são decisões já transitadas
em julgado, daí que se considere um recurso extraordinário.
O objetivo deste recurso é eliminar da jurisprudência
decisões contraditórias relativamente à mesma questão fundamental de direito.
Essa contradição pode dar-se entre dois acórdãos do TCA, entre dois acórdãos do
STA ou entre um acórdão do TCA e um do STA. No entanto, não se admite recurso
de uniformização de jurisprudência quando o acórdão impugnado segue o
entendimento perfilhado pela jurisprudência consolidada mais recente do STA
(artigo 152º/3 do CPTA), o que se percebe uma vez que na verdade não existem
bem posições contraditórias pois o STA tem vindo a seguir, ao longo de um
espaço temporal relevante, a mesma posição, ainda que esta possa ir em sentido
contrario a decisões anteriores.
Para ser recorrer nos termos desta via é preciso que as
partes ou o Ministério Público interponham a ação no prazo de 30 dias a contar
do transito em julgado do acórdão recorrido.
O acórdão proferido no âmbito deste recurso impugna o acórdão
recorrido e substitui o mesmo (artigo 152º/6 do CPTA), sendo posteriormente
publicado em Diário da República (artigo 152º/4 do CPTA), o que permitirá à
jurisprudência orientar as suas decisões de forma idêntica sobre a matéria em
causa.
IV.
Revisão de sentenças
De acordo com o artigo 154º/1 do CPTA, a revisão da sentença
é pedida ao tribunal que proferiu a mesma, o que nos leva a concluir que esta
figura não se trata verdadeiramente de um recurso, mas sim um pedido de
reapreciação ao mesmo tribunal.
São fundamentos para o pedido de revisão os constantes do
artigo 696º do CPC (artigo 155º do CPTA): a) a existência de outra sentença
transitada em julgado tenha dado como provado que a decisão resulta de crime
praticado pelo juiz no exercício das suas funções; b) verificação da falsidade
de documento ou ato judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou
árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever,
não tendo a matéria sido objeto de discussão no processo em que foi proferida; c)
apresentação de documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que
não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a
rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais
favorável à parte vencida; d) quando se verifique a nulidade ou anulabilidade
de confissão, desistência ou transação em que a decisão se fundou; e) tendo
corrido a ação e a execução à revelia, por falta absoluta de intervenção do
réu, se mostre que faltou a citação ou que é nula a citação feita; f) quando a
decisão seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância
internacional de recurso vinculativa para o Estado Português; g) quando o
litígio assente sobre ato simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso
do poder que lhe confere o artigo 612.º, por se não ter apercebido da fraude.
Têm legitimidade para pedir a revisão as partes, o Ministério
Público (artigo 155º/1 do CPTA), quem, devendo sê-lo, não foi citado no
processo e ainda quem, não tendo tido oportunidade de participar no processo,
venha ou esteja a sofrer com a execução da decisão (artigo 155º/2 do CPTA),
sendo que o prazo para interpor pedido de revisão varia, acordo com o artigo
697º do CPC (aplicável subsidiariamente – artigo 154º/1 do CPTA), varia entre
os 60 dias e os 2 anos.
Bibliografia:
- Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2016, 2ª edição, Almedina.
- Ricardo Guimarães, “Os recursos no Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, em Comentários à revisão do CPTA e do ETAF, 2016, 2ª edição, AAFDL Editora.
- Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, 4ª edição, Almedina.
- José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa – Lições, 2017, 16ª edição, Almedina.
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