sábado, 8 de dezembro de 2018

Os recursos em contencioso administrativo: notas gerais


Os recursos em contencioso administrativo: notas gerais


Os artigos 140º a 156º do CPTA vêm prever a matéria dos recursos jurisdicionais em matéria administrativa. Além dos artigos mencionados recorre-se também às normas do Código de Processo Civil, uma vez que, para além de ser aplicado supletivamente (artigo 1º CPTA), também serve de ajuda interpretativa, já que, em alguns aspetos, o regime dos recursos em processo administrativo se assemelha ao regime em processo civil.
Começarei por analisar questões gerais como a admissibilidade dos recursos, o tribunal competente, a legitimidade para interpor recursos, a interposição de recurso e os seus efeitos, a sua tramitação e a decisão. Numa segunda fase farei uma caracterização breve dos vários tipos de recursos.


1.      Admissibilidade dos recursos

São admitidos recursos de decisões quando o valor do processo seja superior ao valor da alçada do qual se recorre [como veremos esta regra apenas se aplica aos recursos de apelação – cfr. ponto 6, a)], desde que, em razão da decisão, o prejuízo para a parte recorrente seja em valor superior à metade do valor da alçada desse tribunal. Se existir fundada dúvida quanto ao valor desse prejuízo atende-se apenas ao valor da causa – assim dispõem o artigo 142º/1 do CPTA.

Para percebermos se em razão do valor da causa o processo é passível de recurso, é necessário, em primeiro lugar, determinar esse valor – segundo o disposto nos artigos 31º e seguintes do CPTA. Depois, há que determinar o valor da alçada do tribunal - artigo 6º do ETAF conjugado com o artigo 44º da LOSJ. Em seguida, há que determinar, se possível, o valor do prejuízo sofrido pelo recorrente.

É afastado este regime no artigo 142º/3 do CPTA que, para além dos casos previstos no artigo 629º/2 e 3 do CPC, enumera ainda quatro situações em que a decisão é sempre passível de recurso, sendo estas: 1) quando haja decisão de improcedência de pedidos de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias; 2) quando existam decisões proferidas em matéria sancionatória; 3) quando haja decisão proferidas contra jurisprudência uniformizada do STA; e 4) quando haja decisão que ponha termo ao processo sem decidir sobre o mérito da causa.


2.      Tribunais competentes

São, em regra, competentes os tribunais superiores administrativos.
O TCA conhece dos recursos de apelação das decisões dos tribunais de círculo e dos tribunais arbitrais [artigo 37º, a) e b) do ETAF]. O STA só conhece de recursos das decisões proferidas em primeira instância pelo TCA [artigo 24º/1, g) do ETAF], de decisões proferidas pelo TCA em sede de recurso de apelação (artigo 150º do CPTA) e nos casos de recurso per saltum das decisões dos tribunais de primeira instância (artigo 151º do CPTA) – artigo 24º/2 do ETAF.


3.      Legitimidade

A regra geral é a de que, segundo o artigo 141º/1 do CPTA, podem recorrer da decisão proferida quem tenha sido vencido na ação e ainda o Ministério Público, contando que a decisão viole princípios constitucionais ou legais. No entanto, o número 4 deste mesmo artigo vem alargar o campo de legitimidade a “quem seja direta e efetivamente prejudicado” pela decisão, mesmo que “não seja parte na causa ou seja apenas parte acessória”. Existe aqui um âmbito de proteção de quem, mesmo não sendo parte principal da relação sindicada em tribunal, verá a sua esfera jurídica direta e efetivamente afetada com a decisão tomada.

Nos números 2 e 3 deste mesmo artigo considera-se a possibilidade de a parte, que invocou mais de um vício para a impugnação do ato e beneficiada pela anulação do ato administrativo em causa, possa recorrer da decisão na parte em que lhe seja desfavorável. Ou seja, o autor da ação de impugnação pode, mesmo que o ato seja impugnado, recorrer da decisão se não foram considerados todos os vícios invocados. Isto percebe-se uma vez que o ato impugnado com base em invalidade formal pode vir a ser renovado pela Administração. Se a parte assim não o quiser, pode requerer que a decisão do tribunal seja reformulada passando a impedir a renovação do ato.


4.      Efeitos da interposição do recurso

A regra é a de que a interposição do recurso suspende os efeitos da decisão da qual se recorre – artigo 143º/1 do CPTA. O número 2 do artigo 143º do CPTA, consagra os casos em que é atribuído ao recurso efeito meramente devolutivo.

No entanto, diz o nº3 do artigo 143º do CPTA que, quando a atribuição de efeito suspensivo à sentença seja demasiado gravoso para a parte vencedora do litígio ou para interesses por ela prosseguidos, pode o recorrente pedir ao tribunal que afaste o efeito suspensivo e atribua ao recurso um efeito meramente devolutivo, possibilitando assim a execução da sentença. Ora isso não faz grande sentido pois o recorrente terá sempre interesse no efeito suspensivo da sentença, não fazendo sentido que a parte vencida peça o seu afastamento. Assim, Mário Aroso de Almeida diz, e com razão, que este artigo deve ser objecto de uma interpretação correctiva, devendo passar a ser entendido como atribuindo poder de pedir o efeito meramente devolutivo da interposição de recurso a quem tenha interesse nele (o que leva naturalmente a entender que a prorrogativa passa para a parte vencedora).

Nos casos em que é feito o pedido nos termos do nº3, a atribuição do efeito meramente devolutivo depende de ponderação dos interesses em jogo (artigo 143º/5 do CPTA), podendo o tribunal tomar algumas providências por forma a colmatar prejuízos graves que possam ocorrer para a parte vencida decorrentes da execução da sentença (artigo 143º/4 do CPTA).


5.      Prazo, tramitação e decisão do recurso

O recurso deve ser interposto, mediante requerimento (artigo 144º/2 do CPTA), no qual se alegam os vícios imputados à decisão e se formulam conclusões quanto à decisão a tomar. Em caso de imperfeição nas alegações e/ou conclusões feitas pelo recorrente, pode o juiz relator do tribunal de recurso proferir despacho de aperfeiçoamento (artigo 146º/4 do CPTA).

O requerimento deve ser apresentado no prazo de 30 dias, contado de acordo com o artigo 638º do CPC – artigo 144º/1 do CPTA. Nos casos de processos urgentes o prazo é de 15 dias (artigo 147º/1 do CPTA). Em caso de contra-alegação, ou seja, quando o recorrido responde à alegação do recorrente, o prazo é também de 30 dias (artigo 638º/5 e 6 do CPC).

Feito o requerimento, é o juiz do tribunal recorrido, ou seja, do que emitiu a decisão da qual se recorre, que admite o recurso ordenando a sua subida (artigo 145º do CPTA).

Nos casos em que, pela complexidade elevada da questão ou por motivos de conveniência, seja necessário que exista uniformidade jurisprudencial relativamente a uma certa questão, pode o Presidente do STA ou do TCA, por sua iniciativa ou por requerimento das partes (artigo 148º/2 do CPTA), determinar que o julgamento de recurso terá a intervenção de todos os juízes da secção. A esta situação dá-se o nome de “julgamento ampliado de recursos” e que tem como finalidade assegurar, a título preventivo, que não existirão decisões contraditórias relativamente à matéria em causa.


6.      Tipos de recurso

De acordo com o artigo 140º do CPTA, os recursos podem ser ordinários ou extraordinários.
São ordinários os recursos de apelação para o TCA (artigo 149º do CPTA) e os recursos de revista para o STA (artigos 150º e 151º do CPTA).
São extraordinários os recursos para uniformização de jurisprudência (artigo 152º do CPTA) e a revisão (artigo 154º do CPTA).

               I.            Recursos de apelação

Constante do artigo 149º do CPTA, o recurso de apelação permite que se faça uma reapreciação global do litígio, uma vez que o objeto do recurso incide sobre a matéria de facto e de direito. Por isso, o tribunal de recurso, neste caso o TCA, funciona como um segundo grau de jurisdição ao julgar de novo o mérito da causa. No entanto, não deixa o tribunal de recurso de ter de respeitar o princípio do dispositivo. Assim sendo, só pode conhecer dos factos alegados pelas partes.

Quando o tribunal recorrido, julgando o mérito da causa, não conheceu de certas questões que ou se, por qualquer motivo, não conheceu do pedido da causa, o tribunal de recurso pode, se considerar que não havia motivos para se ter procedido naquele sentido, pedir a renovação dos meios de prova e a produção de novas provas de forma a julgar o litígio de forma correta – artigo 149º/2, 3 e 4 do CPTA.
Regra geral, o tribunal de recurso reaprecia a questão e, se julgar procedente o recurso, substitui a decisão recorrida pela nova decisão, mesmo anulando a sentença recorrida.

Mas nem sempre as questões suscitadas resultam numa tramitação simples. Cabe então fazer uma nota relativamente a pontos específicos.

Pedindo o recorrente recurso da sentença com base num dos fundamentos de nulidade do artigo 615º/1 do CPC, ou seja, a) quando o juiz não tenha assinado a sentença; b) quando não se especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) quando os fundamentos apresentados estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) quando juiz não se pronuncia sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. São casos em que o vício é meramente formal ou, sendo de conteúdo material, é de tal maneira evidente e grave que o tribunal de recurso manda baixar o processo ao tribunal recorrido para sanação do vício em causa. Quando estamos perante os fundamentos das alíneas b), c) e e), o juiz de recurso toma logo posição sobre a matéria do recurso, proferindo desde logo uma decisão fundamentada. No caso da alínea d), o juiz declara sem efeito a decisão tomada pelo tribunal recorrido.

Quanto às questões prévias apreciadas pelo tribunal recorrido, diz o artigo 88º/2 do CPTA (que funciona como limite ao artigo 149º/3 do CPTA) que estas só podem ser reapreciadas no âmbito do recurso se 1) tiverem sido proferidas em despacho saneador e 2) se tiver havido recurso desse mesmo despacho.

             II.            Recurso de revista

Os artigos 150º e 151º do CPTA preveem dois tipos de recurso de revista: o recurso de revista de decisões proferidas pelo TCA em sede de recurso e o recurso de revista per saltum.

a)      Recurso de revista de decisões proferidas pelo TCA em sede de recurso

Na origem do CPTA foi criada este tipo de recurso uma vez que se considerou útil que, em matérias que se afiguram de maior importância e relevância, o STA possa ter uma intervenção, decidindo e assim orientando os restantes tribunais quanto ao sentido da jurisprudência. Possibilita-se então ao recorrente um duplo grau de recurso, reforçando-se a sua proteção no âmbito do processo administrativo.

Como vimos e, de acordo com o que se retira do artigo 150º/1 do CPTA, cabe ao STA regular e dosear a intervenção que tem nos processos, uma vez que o critério para que se possa recorrer para o STA neste caso já não diz respeito ao valor da causa, mas sim à relevância jurídica ou social que esta possa ter ou quando seja necessária uma melhor aplicação do direito. Assim podemos constatar que este recurso de revista tem caráter excecional funcionando como uma válvula de segurança do sistema para casos em que se considere verdadeiramente necessária uma reapreciação da decisão.

Aqui, não há lugar a novos factos. O STA julga com base nos factos já existentes e reconhecidos pelos tribunais inferiores e aplica o regime jurídico que considere adequado de forma definitiva (artigo 150º/3 do CPTA).

b)      Recurso de revista per saltum

Estamos aqui perante um caso em que o recurso se faz diretamente dos tribunais de círculo para o STA.

Naturalmente, este tipo de recurso tem um carácter verdadeiramente excecional, o que é comprovado pelos requisitos constantes do artigo 151º/1 e 2 do CPTA e que têm de se preencher cumulativamente: valor da causa superior a 500.000€ ou indeterminável e a causa não pode versar sobre matérias de funcionalismo público ou de segurança social.

Uma vez que nos recursos de revista per saltum apenas se conhece de matéria de direito, as questões de facto têm de estar assentes. Não o estando, o STA determina que o processo baixe ao TCA (artigo 151º/4 do CPTA), sendo aí julgado como apelação.

Estando preenchidos os requisitos é o recorrente obrigado a enveredar por esta via ou pode recorrer ao TCA em recurso de apelação? Tem-se entendido, nomeadamente por Mário Aroso de Almeida, que está o recorrente obrigado a recorrer ao STA em revista per saltum, isto porque, a competência do STA é exclusiva. Nestes casos, se o recorrente recorrer ao TCA deve este, verificando-se os pressupostos, mandar subir o caso ao STA, mesmo sem vontade do recorrente.

           III.            Recurso de uniformização de jurisprudência

O objeto deste recurso para o STA são decisões já transitadas em julgado, daí que se considere um recurso extraordinário.

O objetivo deste recurso é eliminar da jurisprudência decisões contraditórias relativamente à mesma questão fundamental de direito. Essa contradição pode dar-se entre dois acórdãos do TCA, entre dois acórdãos do STA ou entre um acórdão do TCA e um do STA. No entanto, não se admite recurso de uniformização de jurisprudência quando o acórdão impugnado segue o entendimento perfilhado pela jurisprudência consolidada mais recente do STA (artigo 152º/3 do CPTA), o que se percebe uma vez que na verdade não existem bem posições contraditórias pois o STA tem vindo a seguir, ao longo de um espaço temporal relevante, a mesma posição, ainda que esta possa ir em sentido contrario a decisões anteriores.

Para ser recorrer nos termos desta via é preciso que as partes ou o Ministério Público interponham a ação no prazo de 30 dias a contar do transito em julgado do acórdão recorrido.

O acórdão proferido no âmbito deste recurso impugna o acórdão recorrido e substitui o mesmo (artigo 152º/6 do CPTA), sendo posteriormente publicado em Diário da República (artigo 152º/4 do CPTA), o que permitirá à jurisprudência orientar as suas decisões de forma idêntica sobre a matéria em causa.

          IV.            Revisão de sentenças

De acordo com o artigo 154º/1 do CPTA, a revisão da sentença é pedida ao tribunal que proferiu a mesma, o que nos leva a concluir que esta figura não se trata verdadeiramente de um recurso, mas sim um pedido de reapreciação ao mesmo tribunal.

São fundamentos para o pedido de revisão os constantes do artigo 696º do CPC (artigo 155º do CPTA): a) a existência de outra sentença transitada em julgado tenha dado como provado que a decisão resulta de crime praticado pelo juiz no exercício das suas funções; b) verificação da falsidade de documento ou ato judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objeto de discussão no processo em que foi proferida; c) apresentação de documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida; d) quando se verifique a nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transação em que a decisão se fundou; e) tendo corrido a ação e a execução à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que faltou a citação ou que é nula a citação feita; f) quando a decisão seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português; g) quando o litígio assente sobre ato simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 612.º, por se não ter apercebido da fraude.

Têm legitimidade para pedir a revisão as partes, o Ministério Público (artigo 155º/1 do CPTA), quem, devendo sê-lo, não foi citado no processo e ainda quem, não tendo tido oportunidade de participar no processo, venha ou esteja a sofrer com a execução da decisão (artigo 155º/2 do CPTA), sendo que o prazo para interpor pedido de revisão varia, acordo com o artigo 697º do CPC (aplicável subsidiariamente – artigo 154º/1 do CPTA), varia entre os 60 dias e os 2 anos.




Bibliografia:
  • Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2016, 2ª edição, Almedina.
  • Ricardo Guimarães, “Os recursos no Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, em Comentários à revisão do CPTA e do ETAF, 2016, 2ª edição, AAFDL Editora.
  • Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, 4ª edição, Almedina.
  • José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa – Lições, 2017, 16ª edição, Almedina.

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